sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Pensando alto

Quando a alguém vem uma necessidade de escrever que se manifesta até incômoda, uma vontade de se expressar no mundo sem necessariamente querer mudá-lo - pois sabendo seu tamanho nem pensa nisso, resta a esse alguém senão outra coisa: escrever. Mas mesmo que não se importe com mudar as coisas quem escreve, algo sempre muda depois de um ponto. Um estado de ânimo pode mudar. Escrever pode levar a determinadas ações como a arrumação de uma bagunça interior, subjetiva, de algo passado, vivido - o armário do quarto dos fundos da psique. Ação que é capaz de provocar um movimento maior. Outras vezes um mundo novo pode ser criado para o leitor viver enquanto lê, quando se cria uma história. Escrever leva alguém a pensar. 

Mas, será que a esse alguém a vontade é de tão somente se expressar ou de invariavelmente escrever como forma de expressão, distingue? Talvez as duas coisas, que se complementam ao atender uma necessidade. Claro que expressar-se não se restringe ao ato de escrever. Pode-se expressar um estado de espírito varrendo o chão com um ar distraído ou com muita atenção; ao fazer um bolo com entusiamo ou não; ou ainda um prato para o jantar. Ao ligar para um amigo. E ao deixar o tempo passar. Expressar-se pintando, dançando, ao cantar e tocar um instrumento musical. Enfim, nas formas de arte, esse lugar sublimado e propício de se guardar a vida. 

Mas quando escrever for a escolha de alguém, se torna uma prática cotidiana, um modo intencional de experimentar a vida de dentro das palavras. Uma forma de se deixar nas coisas. Sim, um modo de se deixar no mundo, onde nossas marcas ficam de um jeito ou de outro. Um caderno velho com palavras escritas dentro dele numa gaveta, como uma caixinha de parafusos de não se sabe o quê, ou pilhas gastas, algo de si ali. 

Penso no escritor amador. Escritor de brincadeira, de caderninhos, de bloco de anotação, de blog, das margens de livros que outros escreveram. Escritor de tempo livre, que só pode e consegue escrever se os demais trabalhos estiverem em dia, de acordo. Penso agora em Cora Coralina. Em Manoel de Barros. Nos mestres. E naquele que escreve só pelo prazer de ver o desenrolar das palavras dentro de um texto. Mesmo para ele escrever é deixar o pensamento respirar e isso muda tudo, pois dá a vida interior a chance de continuar a viver. Ainda que isso não mude o mundo, muda o mundo de alguém. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Mania de ler

É de uma vontade insistente e boa parte do meu tempo livre invisto em leituras. Encontro nas palavras um certo tipo de companhia que de outro modo não encontraria. Tenho lido alguns contos, de vez em quando poesia, enquanto dou continuidade a um romance. Também gosto de ler livros que falam sobre livros. Esses me ajudam a ter um olhar mais crítico, a compreender melhor a estrutura de um texto, ampliam e organizam  possibilidades interpretativas, me fazem olhar com outros olhos, mais apurados, os personagens e os seus mundos. Me ensinam sobre o próprio processo de leitura. 

Ler faz o pensamento se mover, reavivando a atividade psíquica e o mundo interior. Citando Michéle Petit, os textos lidos devolvem ao leitor ecos mais profundos dele mesmo. Ler é um modo de se conhecer. De aprender algo sobre si (e claro, sobre o outro, sobre o mundo também!). Clarice dizia que é possível aprender de dois modos: lendo e vivendo. Ler é um modo de viver. Sou, no entanto, uma leitora comum. Preciso de me esforçar para guardar algumas informações que durante as leituras absorvo. Leio devagar e lanço mão de ferramentas, anotações, busco às vezes saber o que outras pessoas estão dizendo ou já disseram sobre o tema/leitura em questão, em alguns casos. Socializo. 

Às vezes leio com disciplina, com a calma de quem descasca uma mandarina para em seguida desfrutar seu sabor. Outras, em ardor, aos saltos, vou de um livro para outro, como quem persegue uma pista. Uma pista sobre o que possa ser a solução de um enigma interior, que sempre se abre e desdobra em outros. Se torna assim o atendimento de um desejo. A dissolução de uma angústia; ações que nos fazem ser quem somos. Ler ajuda-nos a elaborar a vida que é tecida nas mais corriqueiras das situações também. 

Para fechar, vou deixar aqui com esse breve registro sobre minha relação com a leitura, as principais do momento. Concluídas e em andamento. Não incluí as leituras que faço com meu filho pequeno, porque aí não são as minhas, mas as dele. Também não incluí aqui blogs ou jornais literários que acompanho como o Rascunho e o Publishnews, por exemplo, cuja algumas colunas muitas vezes me dizem tanto. 

Contos
Bola de cabelo, O homem do brejo - Margareth Atwood 
A balada do café triste - Carson McCullers
Palhaça - Raquel Abend Van Dalen 
Felicidade Clandestina (revisitei) - Clarice Lispector 
Toda luna, todo año - Lucia Berlin

Romance
Beleza e tristeza - Yasunari Kawabata

Poesia
Varandas e outras - Sophia de Mello Breyner Andressen
Hilda Hilst 
Rique essa palavra, A porta de saída, Religião -  Ana Martins Marques
Ana Cristina Cesar 

Livros sobre livros
Ler o mundo - Michèle Petit 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Só para mães

Observo como brinca no chão da sala de estar do nosso ap de faz-de-conta meu filho que está para completar dois anos de idade logo, logo. Dando funções novas a alguns objetos que o cercam, funções diferentes das usuais, ele se entretem por algum tempo abosorto. Os blocos magnéticos viram uma espécie de massa dentro de forminhas de silicone, ao que ele nomeia "fubá", referindo-se, deduzo, ao bolo que com alguma frequência fazemos juntos. Peças de lego, além de servirem para construir objetos variados que brincamos ser esculturas, quando não animaizinhos ou bonecos, automóveis, bem normal, se transformam também em "café" dentro do seu bule mágico. Noto ainda como ele começa a compreender as funções de uma ficção sempre que lemos um livro para ele. Também dá sinais de que percebe suas possíveis relações com a realidade. Outro dia mesmo, no mercado, foi um exemplo disso. Bibo, um coelho, é no momento seu personagem predileto. Apresentamos recentemente um amigo seu, Gildo, um elefante bastante corajoso, cujo um medo que tinha conseguiu superar. (As fábulas a que me refiro foram originalmente criadas pela escritora e ilustradora Silvana Rando e valem muito.) 

Quem será, no entanto, meu filho, nos momentos em que não estou junto para acompanhar seus movimentos, me pergunto. Quero dizer em ambientes socais, que há bem pouco tempo passou a frequentar com reguluridade, como a escolinha por exemplo. É verdade que antes disso já haviam os parques, alguns restaurantes, o ambiente urbano que o circunda, as depedências do condomínio, a casa dos avós, de alguns amigos e parentes, nosso próprio lar, os lugares todos que visitamos e que formam os ambientes sociais que ele desde antes da escolinha já frequentava. Bem, quando estamos juntos vejo quase tudo: presto atenção com os olhos do sentido também e mesmo assim algumas coisas às vezes me escampam, pois, humana, tenho falhas. Não tenho olhos atrás da cabeça ou um braço nas costas, menos ainda, asas nos quadris. Ao correr, feliz, ele tropeça e cai. Chora, se machuca um pouco. Não vi. Que coisas piores possam acontecer num átimo de distração, meu Deus que o livre. Repito essas palavras em quase oração sem respirar para que dentro de mim elas ganhem em densidade e frutifiquem. 

Que eu, no fim, não possa saber literalmente quem ele por inteiro é, especialmente quando não estamos juntos, faz parte do mistério que me seduz - mas não impede minha curiosidade de imaginar e questionar mesmo. Fico, bem mãe, pensando em como ele se comporta na hora do lanche com os coleguinhas na escola; se relciona bem com os profissionais da instituição; de que será mais gosta de brincar lá; quais são os gestos de que lança mão quando sugere algo para os seus mais novos amigos; que papéis assume junto à sua turminha, durante as brincadeiras; Faz birra longe de mim? Em que momentos prefere brincar sozinho; gosta de contemplar e brincar com a natureza do jardim ou passa mais tempo no parquinho, brincando  de bola, casinha, balanço? Como explora os ambientes na minha ausência? Como está vivendo a relação com os outros? Como sorri quando olha para a professora? Para essas perguntas tenho as respostas, pois nossa comunicação com a escola que escolhemos para Otto é boa. Mesmo assim, existem aspectos dele, do todo que ele é, que seguem sendo um mistério para mim. E essa é a parte fantástica da história. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Berlim

Em julho de 2019 chegávamos em Berlin, esse canto do mundo onde ficamos por oito dias. Bem hospedados na Ilha dos Museus, distrito de Mitte, fizemos longos passeios que nos davam à vista, o Rio Spree. Do nosso hotel podíamos ir caminhando até o Bode Museun, o Pergamón e o Neues, onde vimos o Busto de Nefertite. Era pertinho. Um dos momentos de que me recordo com vivacidade é da nossa subida a Berliner Dom por dentro, imponente catedral, que em sua torre oferece um panorama fantástico da cidade. Para chegar lá sobe-se por estreitas e intermináveis escadarias, que em formas circulares nos desequilibram o labirinto, mas a recompensa é certa. Na mesma vibe, só que com menos esforço pois se sobe de elevador, visitamos a Fernsehturm logo depois de passar pelo famoso Relógio Mundial, o Weltzeituhr, na Alexanderplatz. Foi ali que vimos, numa noite, um brasileiro teatreiro apresentar sua arte no meio da praça repleta de espectadores que se sentavam aqui e ali para assistir a sua peça. Nós também ficamos e a assistimos até o fim, como se estivéssemos em casa.  

Nosso tempo em Berlin nos trouxe momentos imprevisíveis em que ficamos absorvidos. Lembro-me aqui das espécies inusitadas de peixes e animais que vi no Aqua Dom & Cia, politicamente incorreto até, alguém poderia dizer. Da sensação que dá quando diante de um viveiro de inseto de tipo duvidoso se pára por um instante e olha; da perplexidade que se sente ao observar o modo de funcionamento de uma água-viva ou várias que flutuam no interior de um vidro gigantesco com água dentro a pouquíssimos centímetros de distância da gente. O mundo é surreal. Nem vou falar dos castelos. Do Palácio do Reichstag, do Tiergarten, do Portão de Brandemburgo. O Olympistadion. Lugares bastante comuns quando se pensa na capital da Alemanha. Não vou falar ainda do schnitzel deles que comi. Do spätzle deles também e da cerveja de banana que experimentei na Sony Plaza, bem turista. Precisaria de detalhes que não alcanço em palavras para descrever essas experiências. 

Num dia de manhã, depois de deixar o hotel, alugamos uma bike elétrica e fomos visitar um aeroporto abandonado, o Tempelhof, que serve aos berlinenses como parque. Foi o passeio de que o Wagner mais gostou de fazer, ele diz. Eu também gostei, foi bastante contemplativo. No aeroporto abandonado  observávamos o vazio enquanto não parávamos de pedalar. Era verão na Europa e fazia bastante calor. 

A viagem terminou, mas as coisas não pararam de acontecer. Poucos meses depois veio a pandemia. Também tranquei a faculdade de Letras; tive um filho; mudei de profissão; afirmei meu casamento; mandei um e-mail para um escritor que amo dizendo que eu existo e ele me respondeu; consegui fazer um bolo que a receita eu achava difícil; li livros de autores desconhecidos; investi em algumas ideias enquanto desistia de outras. Em Berlin eu só estava lá deixando que a vida fosse o que ela poderia ser. E ela foi maravilhosa. No fim eu só tinha duas ou uma certeza: quando amanhecesse voaríamos para Amsterdã. Segui em frente mesmo assim e já faz três anos. 

terça-feira, 19 de julho de 2022

19 de julho

 "Ler é como pensar, como rezar, como conversar com um amigo, como expor suas ideias, como ouvir a dos outros, como ouvir música, como contemplar uma paisagem, como dar um passeio pela praia". 

Fonte: site homoliteratus.com

Ao ler esse trecho famoso do livro 2666 do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) me acalmo: enquanto leio, faço muitas outras coisas também. Quantas vezes cativa de minha própria ficção, sinto-me liberta pelo ato da leitura dos livros que me rodeiam e que me abrem as portas e janelas da casa que sou. Sem mais estar encerrada, continuo a viver e vou para outros lugares, me desloco, ando por caminhos ainda não visitados, exploro, rio, choro, surpreendo-me e sinto tédio. Conheço personagens que ficam amigos - ou não, e que ajudam também a viver o mundo fora dos livros, onde, que sorte, temos amigos também. A arte cumpre seu papel. Movimento-me por entre as palavras e faço o espaço que me compreende expandir. Me coloco a praticar a vida possível, nela me reinvento, e assim sou feliz. 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Deriva

Sempre seria alguém que

escrever precisava de

aprender. 

Superado esse fato

continuava escrevendo. 

*

Sobre a pia a porcelana branca, lavada 

o chão da casa, varrido 

a roupa suja - posta para lavar 

arquejava de dentro da máquina.

tudo pronto:

flores enfeitando a mesa.

se havia preparado

em detalhes 

para receber 

uma alegria nova. 

*

Na manhã modorrenta

ficou recolhida dentro de um poema

e não viu quando o tempo 

sem fazer alarde passou.

Sintetizou que foi uma morte necessária, 

aquela das horas.  

*

Pois que nem tudo morre,

revelou numa crônica de

Hilda Hilst, Descida, a frase. 

E o resto do dia ainda estava lá

por graça  

entardecia, o céu, a noite, depois seu crepúsculo, 

alvorada.

Da janela de brancas cortinas de linho

se via 

o horizinte, o vinho, o jantar  

a companhia 

a criança brincando 

o chão da sala de estar

tudo lá 

correndo, correndo

a vida

por graça. 

sábado, 16 de julho de 2022

Arpejos

Foi enquanto lia

Virginia Woolf  

que vi a linha do horizonte

em página de livro se abrir 

e iluminar em tomos 

as cores do entardecer. 

*

No ontem mazelento 

tive lembranças de uma história 

   vívida - saudosa 

pois que em fôlego trôpego

o livro já lido reli do início ao fim

  e o deixei para trás. 

*

Não era bobagem.

Era minha vontade 

  de ler 

Ana Cristina César. 

*

Revisada a lista

certifiquei o carrinho de compras 

para o jantar hoje

só livros

escrito por mulheres

e um tim-tim. 

*

Com o tempo

talvez a gente 

aprenda

a aceitar os próprios limites

e aprenda

e respeitar a necessidade 

que se tem 

de escrever 

(ler entrelinhas viver)

do jeito que lhe for próprio 

mesmo que alguém 

ache graça dessa formulação 

pequena

e rindo

se ache maior

que ela.