domingo, 26 de abril de 2020

Poucas & Parcas*

I

 

lavandas

azul

jasmim

jardim

fogo

cinzas

 

II

 

vento

movimento

paisagens

matinais

áridas

paradas

 

III

 

basta

quando

presente

é

bastante

 

IV

 

folhas

secas

obsessão

folhas

secas

ossos

 

V

 

ser

ajuda

destrava

esse

não

ser

 

VI

 

homo

ver-se

move

homem

em

mudança 

 

VII

 

coração

deserto

corpo

jaz

silêncio

paz

 

VIII

 

Adélia Prado

divina

Clarice Lispector

castelo

fortaleza

interior

 

IX

 

lembrança

guardada

gaveta

fechada

nós

escritos

 

X

 

preposições

jogo

relações

interseções

linguagem

poder

 

XI

 

mulher

presente

viva

presença

protetora

Hilda Hilst

 

XII

 

anoitecia

amores   

amanhecia

poesia

sabia

fazer

 

XIII

 

imaginar

buscar

voar

alturas

infinita

mente

 

XIV

 

furei

paredes

vazio

meu

quadro

caiu

 

XV

 

sábado

tem

você

quisera

eu

somente

 

XVI

 

anseio

desejo

falta

saudade

insuficiente

viver

 

XVII

 

esperança

faz

parte

meu

ser

criança

 

XVIII

 

rabisco

palavras

soltas

rascunho

meus

plurais

 

XIX

 

ser

para

mim

mar

oceano

navegável

 

XX

 

melodia

ressoando

universo

musicando

tocando

gerúndios

 

XXI

 

continuamente

ser

apenas

semente

agudamente

florescer

 

XXII

 

escrevo

fragmentos

inteiros

palavras-caco

autorretrato

 

XXIII

 

subjetiva

abstração

Charles Baudelaire

flores

maldades

poéticas

 

XXIV

 

acredito

no

sentido

que

acreditar

_________________________

*Com essas aldrávias participei do II Concurso Novos Talentos da Literatura "José Endoença Martins" - 2018/2019, promovido pela FURB, e, entre os classificados, alcancei o 6º lugar. 


domingo, 5 de abril de 2020

O espírito de Capitulina, a cadela.

Capitu tem espírito de andorinha, sente vontade de voar, mas sabendo-se cadela, não vai muito longe do chão e passa as tardes no sofá. Às vezes passeia até a esquina, onde costumava encontrar o ex-amigo-cão Oberico, que tinha fama de ser dono da Vila Nova. Realmente aquele cachorro de mordida cruzada e rabo torto dominava a região, conhecia cada beco, era sempre visto por aí, jamais se perdia e soava muito simpático. Quando vai à esquina Capitu ainda encontra a amiga-cadela Bilú, que tem pelo esbranquiçado e carrega nos olhos um pequeno sinal vermelho. Ainda não perguntei a sua dona o porquê disso, mas fantasio sobre. Com Bilú Capitu tem uma amizade canina platônica porque elas nunca chegam de fato a conversar. Os rabinhos peludos só se abanam de longe quando se veem e cada uma segue seu breve caminhar que termina sempre em casa. Vivem a andar em círculos, dando a volta no quarteirão.

Capitu

A respeito do seu espírito de andorinha, eu acho melhor se Capitu tivesse espírito de águia, talvez impunha mais respeito. Mas espírito de andorinha é melhor que ter espírito de galinha, uma ave que nem sabe voar e acaba sendo comida, às vezes num prato de sopa, muito sem graça. Elas ficam ciscando o chão e são facilmente hipnotizadas (basta ver no Youtube - galinha hipnotizada com risco no chão). Se você ler um pouco mais sobre esse fenômeno, vai ver, porém, que não se trata de hipnose. É um estado catatônico. Um instinto que elas têm para se defender de um sofrimento imposto por alguém (muito mal, por sinal) que segura o corpo delas e empurra a cabeça contra o chão, ou seja, exerce sobre elas uma forma de violência ou excesso de poder. 

Ao se sentirem subjugadas assim elas primeiro se debatem um pouco, mas logo o poder do seu carrasco as impedem de bater asas, de bicar pra se defender ou mesmo de correr. Esse tipo de reação, uma forma de catatonia, também acontece em humanos sob traumas ou sofrimento intenso e é mais comum do que se possa imaginar. Você saberia como é se fosse psicóloga, psiquiatra ou até psicanalista. Eu que sou psicóloga (acho irritante repetir isso, mas algumas pessoas que me leem talvez não saibam) sei como é. 

Triste, muito triste é uma expressão que define bem, mas não desata os nós de uma experiência como essa, que vai além de agressão física. Muitas vezes a violência imposta de um alguém para um outro alguém é simbólica, mesmo assim, igualmente devastadora, causa lesões sérias na subjetividade de que a sofre. E ninguém merece esse tipo de sofrimento, seja galinha, gato, cachorro ou gente como a gente. O que desata o nó nesses casos é falar e falar. Buscar ajuda se ajudar. 

Tenho amigas psicólogas que falam desses assuntos difíceis de um jeito bem técnico e eu gosto, presto atenção, admiro, mas não tento copiar porque se falo tecnicamente as pessoas costumam bocejar na minha cara nessas horas na sessão. Por isso, falo assim sem ares de importância de um assunto que deveras é. E tudo isso pra dizer que a Capitu tem espírito de andorinha, isso era tudo o que eu queria ter dito. Bem, quanto ao cão Oberico nunca mais foi visto e há boatos na vizinhança de que foi morto por um câncer que dá em cachorros.  

terça-feira, 3 de março de 2020

Vida de fakes ou Hilda Hilst nada meiga (em plena pandemia)


Mentira, Engodo, Morte e Hipocrisia, texto de Hilda Hilst (1930-2004) e que compõe a obra Cascos & Carícias & Outras Crônicas (Editora Globo), embora tenha sido escrito nos anos idos de 1993, poderia ser também uma tentativa de elaboração subjetiva do cenário político-socioeconômico atual, assim como, muitos outros textos desta mesma obra. O que nos leva a crer, que tudo continua de certa forma igual, mesmo sendo diferente. Compreendido sob essa perspectiva, o termo fake e suas derivações, tão presente nos nossos dias, já é um velho conhecido da espécie homo sapiens. De todo modo, sempre há uma pitada de evolução na maldade humana. Se já era difícil lidar com fofocas familiares ou com o cinismo socrático daquele analista psicológico ou, ainda, se já era difícil conviver com o sorriso maroto do colega de trabalho, puxa-saco do chefe, lidar com as mentiras das realidades virtuais é, no mínimo, diante dos anteriores, um senhor desafio. Desgastante. Ano 2018, século XXI, e nós, aqui, ainda. Longe de ser uma brincadeira ingênua e risível, as falsidades digitais – das notícias às identidades, são como mola propulsora para todo tipo de azáfamas entre os seus criadores, a sociedade humana. Origem de muito caos.  

Enquanto a desconfiança cresce, vimos Mark Zuckerberg – criador da maior rede social do mundo, compartilhar com o público suas mais sinceras resoluções de ano novo, entre elas, o combate às fake news e ao discurso de ódio. Digno. Só não muito coerente, já que sabemos que muitas polêmicas giram em torno de notícias falsas e que discursos de ódio giram em torno de polêmicas e que ambas giram em torno de views, likes, comments e ações que mantém o facebook mais vivo e ativo do que nunca. Uma grande e monstruosa máquina, alimentada, também, por afetos e afetações humanas. Assustador, um pouco. Vade retro satanás, que aziago, porque não somos anunciadores do apocalipse - tarefa funesta realizada por figuras contemporâneas, líderes políticos e suas tropas. Não queremos o fim, tampouco acreditar nele. Num tempo de tanta desesperança, não se pode gastar uma fé em vão. Ter fé é acreditar na continuidade do que estamos fazendo por aqui, ano 2018, século XXI. Ter fé é, portanto, acreditar no amanhã e nos recursos que estamos criando para fazer dele um dia melhor.

Voltando às fake news. Somos todos vítimas. Somos todos culpados. Levados por nossos desejos, nossas vaidades, tropeçamos no risco de dar credibilidade, por exemplo, a perfis fakes nas redes sociais, encomendados principalmente pela massa política para ludibriar pessoas comuns em prol de seus interesses e, dessa forma, os perfis ganham primeiro espaço, para depois ganhar votos, para depois ganhar poder. Na mesma esteira, vemos todo tipo de notícias sendo difundidas, por exemplo, sobre intervenções governamentais que se anunciam como uma suposta tentativa de estancar a violência, esta, consequência também de injustiças históricas e falta de acesso à educação adequada, base para muita coisa. Nesse show de horrores, pessoas reais viram alvo das “fake news da vez” sofrendo, o que, simbolicamente, poderia ser uma espécie de apedrejamento em praça pública com efeitos devastadores, muito provavelmente nem imaginados pelos seus carrascos.  Se imaginado, tudo fica ainda pior.  

Diante disso, difícil pensar em uma solução, até porque é possível que ela não exista. Uma solução só, não seria suficiente para um problema como este que é, deveras, complexo. Pensemos, por isso, em várias. Sobretudo, sejamos capazes de fazer escolhas e de sustentá-las. A boa notícia é que, como indicam os escritos de Hilda, o apocalipse sempre existiu e não é autoria nossa, os modernos. Hilda nos exime da culpa de sermos os responsáveis por toda essa desgraça humanoide. Que nos acalmemos, portanto, diante do cenário eternamente caótico talvez não seja o melhor conselho.  Mas, enquanto não tivermos ideia melhor, deixar de querer ter a razão sobre qual seja a solução, para, como num ato de bravura, pôr entre as mãos um livro, pode ser uma saída para não acabarmos como Dom Casmurro, de Machado de Assis, desconfiado até da própria sombra e apartado de si mesmo, fragmentado. Um pobre diabo assombrado pela sua imaginação que, possivelmente, não encontrava vazão em livros apenas de advocacia. Aquietemo-nos, se possível for, e entreguemo-nos aos olhos de ressaca de personagens como Capitu, de Machado, e tão lindamente cantada por Luiz Tatit e Ná Ozzetti (álbum Rodopio, 2007).  Mesmo que soe piegas, uma ideia ultrapassada. Em tempos de epidemias de fake news, que a leitura, acompanhada de alguma pesquisa, seja nosso remédio e salvação.


Verão, 2018.

Acervo pessoal