sábado, 3 de abril de 2021

Anne with an E, café passado

Recém saído da noite o dia está fresquinho e tenho nas mãos uma travessa refratária de porcelana antiga. Lavando a louça do café da manhã, sinto os cheiros do jejum desfeito ainda espalhados no ar: panqueca de banana com canela, que fiz com farinha de aveia e café filtrado para acompanhar. Adoro. Pela janela da cozinha vejo a luz do dia entrar em raios iluminados fazendo a água que sai da torneira brilhar e gotículas respigam como se fossem pequenos diamantes. Ainda é cedo e a cortina de renda branca parece emoldurar o ventinho que sopra uma temperatura quase fria no meu rosto. Já é outono de novo, gosto de lembrar. Minha estação predileta.  

Do nada, porque penso agora intensamente nele, me sinto dentro de "Anne with an E", o seriado canadense baseado no livro de Lucy Moud Montgomery, escrito em 1908 e pelo qual me apaixonei quando assisti - no outono passado. Imersa nesse instante quero estendê-lo e minha imaginação está repleta. Os cenários e as cenas me invadem. Penso em minhas personagens favoritas. Estou, por um momento, nos diálogos que as fazem ser quem são. Sou eu mesma as palavras que proferem, brinco e me fantasio provisoriamente com letras. Sou um A! Deixo que o ar bucólico e dourado de Green Gables se desenhe bem devagar em mim e encho meus olhos com uma visão estupenda. Desfruto desse horizonte bem de dentro da minha cozinha. 

Anne (Amybeth McNulty) é uma menina órfã que encontra para si um lar e a despeito do seu passado caótico, nunca deixa de esperar um futuro melhor. Espera no sentido de esperançar, verbo em ação. Fã de Jane Ayre, obra famosa da escritora inglesa Charlotte Brontë (1816-1855), Anne é geniosa, com trejeitos teatrais, uma menina bastante excêntrica. Quanto à história em si, que contém questões importantes da pauta feminista, como a condição da mulher e os lugares ocupados por elas na sociedade desde muito tempo, é, em suma, um enredo teen: tem como protagonista uma adolescente em plena transição, com amigos idem, conflitos típicos, mas que aos trinta e poucos anos, me encanta tanto. 

Acho que não sou a única e acredito que o enredo de "Anne with an E" com todos os seus detalhes encanta a muitas outras mulheres como eu que devem se identificar de algum modo com as travessuras, desejos e sonhos de Anne adolescente. "Sua determinação dita seu destino" é o título do primeiro episódio da primeira temporada e fisga nossa atenção com uma beleza ímpar já nos primeiros instantes, onde há um homem com ares heroicos cavalgando, atravessando uma paisagem bucólica com pressa de chegar em algum lugar. O homem, logo descobrimos, de modos simples, poucas palavras e boa índole, trabalhador mas com espírito delicado, viria a se tornar o pai adotivo de Anne. Matthew Cuthbert (R.H.Thomson) não surge para exatamente salvá-la, mas como pai, cumpre seu papel ao acompanhar a mocinha em sua jornada. 

Depois de revisitar Green Gables e alguns de seus personagens, sobretudo revisitar meu encantamento por esse lugar que vive na minha imaginação, volto para minha cozinha onde termino de organizar os restos do café da manhã e me preparo para o dia que está começando. Estamos atravessando o pior momento da pandemia e lembro, mais uma vez, que já é outono de novo. Essa lembrança de algum modo me salva.