sexta-feira, 27 de maio de 2022

Leitura amiga

Entre Nabokov e Noll, obras que nos últimos dias leio, ouço Zélia Duncan para aliviar o peso dos cânones e a tensão que sinto nas costas, logo abaixo dos ombros. A música ajuda e me reascende uma saudade afogada. noto que sinto falta de ler também "Desassossego", livro de Pessoa, como se sente falta de um amigo. Faço jus a minha falta e num arroubo,  furtiva, o visito em meio a pressa. Encontro nas suas páginas palavras e descanso. Me sinto pronta para prosseguir. Em fé às vezes me movo. Mais tarde vou até o mercado da esquina para comprar os ingredientes da janta e no caminho me distraio com a beleza das flores que estão à venda e se mostram  numa vitrine de floricultura. Mas não sou Mrs Dallowey e está tudo bem mesmo que alguns não me compreendam em momentos como esse. Deixo assim que o possível se projete, por hoje, sem mais. E não deixo de escutar, ao pé do ouvido, a letra da música de Duncan enquanto dou cabo à vida: "ser quem se é / aceitar o que não deu pra ser / receita para não sofrer / não ser perfeito mas ser você". (Continuar lendo). 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

A fúria de Noll: isto não é uma resenha

Li a obra "A Fúria do Corpo" do escritor gaúcho João Gilberto Noll depois de participar de um dos encontros online promovidos pela Casa Quarup a respeito do livro e de Noll. Na ocasião, muito especial, em que pude participar, um irmão do escritor também se fez presente enriquecendo ainda mais o encontro com suas palavras e presença. Antes daquele encontro, anos antes, eu já havia lido um artigo do jornalista e também escritor José Castello sobre Noll no seu livro "As Feridas de um leitor", de onde pego emprestado parte do título que leva este texto. E muito provocada por ele, quis ir a uma obra de Noll assim que conseguisse e cheguei hoje, afinal, à A Fúria. 

Já tenho uma história com Noll. 

"A Fúria do Corpo" de João Gilberto Noll (1946-2017) teve sua primeira edição publicada há 40 anos, em 1981. Escrita no fim da ditadura militar no Brasil a obra perfila, em diversos momentos, o modo como também a vida das personagens é atingida pelo regime. Mas esse é apenas um dos aspectos da obra que, em minha opinião de leitora comum, não acho que seja o principal embora atravesse de modo irremediável o centro de enredo: os corpos das personagens. 

Obviamente esta não é uma resenha acadêmica mas a obra de Noll, a quem não sabe, é objeto de estudo acadêmico também e ouro no meio psicanalítico que sempre tem algo a mais a apontar.  O que faz certo sentido porque é bastante difícil ler Noll sozinho. Algum texto de apoio, alguma orientação são eficazes para que o leitor continue firme seu mergulho na obra do referido escritor, que é ampla e rica em sentidos. No google acadêmico podemos acessar alguns desses textos que não são tão inúmeros quanto os de Clarice Lispector, muito popular nas cadeiras de humanas como em Literatura e Filosofia, mas estão lá. Aliás, pensa-se muito em Lispector e também em Virgínia Woolf enquanto se lê Noll. 

Vamos então a um breve resumo que, mesmo sendo incompleto, pode conter spoilers. 

Temos em "A Fúria do Corpo" um narrador-personagem sem nome que habita um contexto caótico e instável: a vida nas ruas da Cidade, Copacabana, onde perambula-se num vai-e-vem frenético tantas vezes sem direção. Esse é o panorama dado ao leitor e é de onde as cenas em que as personagens são constituídas e desveladas surgem em ritmo vertiginoso até o fim do livro. Mas não só isso. Há Afrodite, a coprotagonista, uma espécie de personagem-refletor, que, entendo, é quem dá o nome ao Amor que existe  neste romance difícil. Além desses dois diversos outros personagens aparecem e vão tomando parte nessa estória que não permite que o leitor queira dormir em cima das páginas por ser carregada de aventuras alucinadas e angustiantes que de tão extremas, beiram o fastio. A estrutura em que o texto nos é apresentado, também não passa despercebida. Os longos longuíssimos períodos em parte significativa do tempo sem a pontuação esperada pelo leitor para facilitar a leitura, devolve a ele o trabalho de dar sentido ao texto lido. 

Não sabemos exatamente como o personagem-narrador-sem-nome foi parar no ponto em que o encontramos. Mas mais para o fim da obra há uma menção dada ao que poderia ser sua família, um momento da sua vida de menino em que também o suicício de um primo acontece. Sabe-se, portanto, que há traumas (como na vida de todos, aliás). Mas, fragmentário, o relato nos é narrado e ficamos sem saber se ele é real ou se é um delírio - ficção dentro da ficção - do narrador que parece portar uma linguagem convulsa, quase verborrágica. 

Ler "A fúria do corpo" é mergulhar, sem dúvida, nas entranhas do que pode vir a ser o desejo de alguém e se permitir não sair intocado dele. É, assim, um ato de coragem. 

sábado, 21 de maio de 2022

A fúria que escoa

Estou no trânsito. O tráfego intenso me faz parar: é o sinal vermelho. Algo distraída me deixo passar pela cabeça o que fiz no decorrer das horas daquele dia e listo, mentalmente, o que ainda me resta a fazer. 

Ajusto o cinto de segurança lembrando do livro que em horas contadas leio e do qual sinto vontade de desistir. Respeito minha vontade, não a rechaço, mas fracasso na desistência; Decido que vou prosseguir. Até o fim quero ir com essa leitura que me chega difícil e que leio como quem cumpre promessa. É o enredo, digo com voz murmurada enquanto olho os passantes que apressados seguem seu rumo. Qual rumo? Não. São as personagens. Como chegaram no ponto em que estão o autor não deixa claro, só dá pistas. 

Por que não leio autoajuda? Ou, me questiono, por que não me preocupo com meus próprios problemas ao invés de me ocupar das personagens que leio? Tenho contas a pagar também. Imagino o que uma amiga poderia me perguntar se eu contasse meu estado aflitivo de leitora e rio. Rio alto e sozinha. Gosto da sugestão que me dou. Vou marcar um café para poder falar sobre essas personagens que enquanto leio são como se fossem minhas e sossego com a ideia de leitora que se apropria do que lê - sempre que possível. 

Na rádio do carro que dirijo, os comentários do jornalista que ignoro solenemente, toca Maria da Blondie e me aninho no ritmo da música. Aumento um pouco o volume e olho para o céu imenso. Imenso mistério azul sobre nós. O sinal verde me diz que posso avançar. A rua seguinte aparece como uma passagem por onde pode escoar silenciosa a fúria daquele dia que chega ao fim e que nem menciono aqui. A leitura me envolve os pensamentos como retrata o relato desse instante. 

São 18h e o sol já se pôs. Abro as janelas. Deixo o vento passar e bagunçar meu cabelo enquanto percebo alguns pontos brilhantes no firmamento, são as estrelas.   

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Meus desvios

Às vezes fico às voltas com os sentidos das palavras e as levo para passear entre outros contextos. Com a palavra desvios, que uso para nomear meu blog, não seria diferente. Penso no seu uso variável e acabo por achar que desvios é uma palavra lisa, escorregadia, pois tem múltiplos significados e pode tender a um ato transgressivo. Mas o sentido que gosto nela é o que entendo como  mudança de rota, um movimento ou, dito de outro jeito, um modo de reconfirgurar algo que estava dado. 

Tento desatar o nó que em mim essa palavra faz quando encontro por escrito uma conferência num livro que comprei em São Paulo, à venda no saguão do teatro Paulo Autran do SESC Pinheiros no ano de 2014. Na ocasião fomos assistir ao espetáculo "The Old Woman" (A Velha) dirigido pelo americano Robert Willson e encenado pelo bailarino Mikhail Baryshnikov e pelo ator bastante conhecido Willem Dafoe. A peça é uma adaptação da obra homônima do artista e poeta russo Daniil Kharms (1905-1942) cujo enredo da obra que ainda não li, mas que vi adaptada ao teatro, versa, em suma, sobre um homem - escritor - que é atormentando por uma velha.  

A peça, algo complexa, foi um convite à construção de sentidos inesperados. A partir de imagens que vão sendo "pintadas" diante de um espectador estupefato, que pode contar com algumas legendas para se ajudar, o espetéculo se apresenta. Uma experiência sem par que me volta hoje como uma lembrança surreal em que vejo dois pitorescos personagens, corpos celestes, sentados num balanço que ancorado no nada de um lugar como deve ser o espaço sideral, em pêndulo, oscilam para frente e para trás. Conversam. Olham. Poetizam suas palavras e o olhar para o vazio, talvez o infinito. 

Mas voltando à conferência que encontro dentro de um livro e que leio como quem assiste às palavras. Trata-se do capítulo "O tempo que nos resta" de Jean-Pierre Dupuy, um ensaio filosófico. Nele Dupuy vai falar sobre trabalho, riqueza, produtividade e sua relação com o nosso tempo. Citando de entrada Ivan Illich (1926-2002), um de seus mestres, para quem no modo de produção industral está  fundamentada a lógica do desvio, Dupuy traz à tona também as ideias de Leibniz, um matemático alemão do século XIII,  que, nas suas palavras, "defendia a tese de que, a exemplo de Deus, que criou o melhor dos mundos possíveis, o ser humano se caracteriza pela sua capacidade de fazer desvios para melhor atingir seus fins". E segue dando exemplos. 

Pode até parecer, a um leitor distraído, que está tudo bem assim, na lógica do desvio como fundamento da sociedade industrial. Talvez até divertido. Mas há no texto a presença da inteligência de Ivan Illich, que ajuda a elucidar as coisas e que traz o conceito de contraprodutividade. Seguindo a leitura, através de Dupuy, vemos que Illich mostra como a inteligência humana pode ser por vezes contraprodutiva, criando para si problemas quando na busca de soluções, estúpida.  

Ler esse texto de Dupuy me faz voltar para a palavra desvios que uso para nomear meu blog e me questionar. Quero com ele mais rápido me aproximar de uma suposta solução para alguma coisa? Ambiociono com ele um melhor resultado para algum problema que eventualmente eu tenha? Ou, ainda, o que de fato estou em busca de criar quando faço um desvio para escrever aqui em meio aos afazeres cotidianos que me aboservem o tempo. Um lugar a mais para a palavra ser, penso como resposta à minha própria indagação. 

Lembro, simples, que uso o sentido de desvio aqui para me referir ao meu movimento para a palavra, sobretudo, escrita. Que escrever é sempre um risco, mas faço também um desvio do desconforto que ele evoca e sigo avançando. Só continuo. Por quanto tempo, se o tempo que me resta, não sei. Ler, assim como escrever, pode fazer a vida oxigenar e até brilhar de novo, como se tudo pudesse começar nesse ato outra vez. Tudo talvez seja muita coisa, eu sei. Mas quando uma história sim, isso já é bastante. 

À espera do espetáculo "The Old Woman", no Teatro Paulo Autran, em 2014, São Paulo.


quinta-feira, 12 de maio de 2022

Termas da Imperatriz

Decido que vou me dar uma folga dos demais afazeres e termino de ler pela manhã O médico das termas de Arthur Schnitzler, indicação que me foi dada por uma querida amiga do Rio. Depois vou caminhar um pouco sob o sol do outono, que entre todos, é meu preferido. No trajeto que faço nem percebo a emergência do hospital lotado, o ar entediado da atendente da farmácia, o incessante vai e vem do trânsito barulhento, o pedaço de carne enorme no chão da calçada comido às moscas, a apodrecer. Coisas que em outro momento, se tivesse notado, me pertubariam a alma e me agitariam a mente. Mas hoje não. Me sinto olhada pelo sol e sigo. 

Penso na leitura que, em casa, acabo de fazer. No modo como fui ocupada pelas personagens de Schnitzler até me deixar preencher por elas as horas vazias, enquanto lia, como se domada. Pelo enredo, certamente. O barato dos livros é que neles muitos eventos acontecem na vida das pessoas e nem de longe trata-se de uma vida sem emoções. Nós leitores somos arrastados por elas. Somos arrastados pelas emoções que em nós os livros despertam, também enquanto lemos. Mas essa ideia não é minha. As ideias não tem dono, alías, já dizia um filósofo que há tempo não visito.  

Mas vou deixar para fazer uma resenha do livro em outro momento, até porque já existem tantas. Fazer a minha vai me ajudar a lembrar por mais tempo do Dr. Gräsler, de Katharina, da emblemática Srta. Sabine, de Friederick e da viúva Sommer. Na própria edição que levo nas mãos há no posfácio do tradutor da obra, Marcelo Backes, uma descrição dela e de seus principais personagens que podem ajudar cada leitor a ampliar sua compreensão a respeito do romance. O livro que tenho é uma edição de 2011 da Record. 

Ademais, a leitura de O homem das termas me fez nascer um desejo: quero conhecer Santo Amaro da Imperatriz, uma cidade de Santa Catarina conhecida por suas águas termais. Acho que esse pode ser um bom passeio em família. 

No trajeto
Ainda mais um pouco. 

Enquanto fazia meu exercício matinal, me ia no pensamento, sem cessar, a música A la Folie da francesa Juliette Armanett como se se oferecesse à trilha sonora da minha caminhada; ou como se quisesse me iluminar as reflexões em torno de Schnitzler. Eu a acho linda mesmo, uma bela música. Algo nela me pega. Se o ritmo, a voz aguda, a letra, não sei. Mas achei que melhor do que ali, numa caminhada qualquer, ela fosse cair no soundtrack do filme Amores Imaginários, do canadense Xavier Dolan, que eu gostei muito também quando assisti há anos. Realmente eles têm muito a ver. Ô, memória! Gostar de casar música com filme antigo, mas quem não gosta? 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Um dia após o outro

Ontem passei quase todo o dia contendo o humor, um pouco cansada, queria sossegar. Meu filho, que está com um ano e oito meses, passou a manhã choroso (choraria o que eu não ousava chorar?), também parecia não estar em seu melhor momento. Me percebi sentimental e tratei de inventar mais paciência para lidar comigo mesma. Não sei se consegui. O Otto à tarde dormiu, mas eu não consegui descansar. Era dia das mães e apesar de meus sintomas pré-menstruais dando as caras, eu estava feliz com meus melhores presentes: meu filho e meu companheiro ao meu lado.  

Hoje acordei com vontade de desfazer a rota premeditada do dia. Caminhei por trinta minutos pelo bairro para desanuviar, relaxar a mente, sentir o ar fresco me tocando as bochechas. Deixei que me atingissem em cheio os raios solares da manhã sem proteção alguma. Ainda não eram nove horas. Depois parei para tomar um café na padaria da esquina. Penso que o tempo é meu maior luxo. Quero tanto? 

Amanhã, em partes, ainda não sei o que esperar. A vida não pára de seguir. 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Os Restos & Rastros de Livia

Meu primeiro contato com Garcia-Roza foi durante a faculdade de Psicologia na primeira década dos anos 2000. Li Luiz Alfredo, textos de psicanálise, que guardei até bem pouco tempo. Redescubro agora Livia, sua esposa, escritora e também psicanalista em Restos & Rastros, um livro que contém alguns de seus pensamentos e que foi recém lançado pela editora Geração. Sinto minha vontade de leitura provocada depois de assistir ao "Estação Sabiá" no canal TV 247 do Youtube, em que a entrevistadora Regina Zappa conversa com o escritor e jornalista José Castello e com Livia Garcia-Roza. 

Percebo, ao longo da conversa, que Restos & Rastros tem coisas importantes a me dizer (gosto de criar uma relação intimista com os livros). Quem não? E faço uma encomenda. 

Já com o livro em mãos, me detenho diante dele por um tempo deixando de lado outras coisas que também preciso fazer além de ler. "Os livros que amamos guardam um poder curativo" observo a frase depois que leio "O poeta não lembra, inventa" no capítulo "A segunda chance para viver", enquanto me sobrevem o poeta Manoel de Barros e vou adiante. 

Lendo Restos & Rastros deixo-me absorver pelas páginas e lá me demoro. Ao ler o capítulo "Nossa força de reserva" rascunho no papel palavras que nunca ousei dizer em forma de poema. Me sinto fria. Calço meias e faço um chá. Volto para o sofá onde me encolho. Ainda me resta um tempo. Continuo. 

Sigo em frente com a leitura e o capítulo seguinte me aquece o olhar. Viro as páginas como se de susto em susto e penso que vou chorar mas só acho boba minha reação. Rio. Sinto uma alegria que vem acompanhada de uma sensação que dá quando se encontra algo de bom e que se quer guardar.  Livia com seus pensamentos ilumina e nos ajuda a inventar o amanhã, quando não o hoje. Sua palavra é uma graça que recai também sobre nossas lembranças, apaziguando-as se agitadas, revigorando-as, quando mortinhas. 

Vou visitar Restos & Rastros ainda mais e mais vezes. Resgatarei o que ficou para trás. Porque algo sempre fica, como palavras não ditas. Vou juntar os restos que encontrei no livro de Livia e persistir mais inteira. Notar nos rastros que a vida vai deixando um caminho a seguir.