sábado, 30 de abril de 2022

Um sonho e Arthur Schnitzler

Culpada, me encaminhei até a igreja mais próxima. Lá localizei sem dificuldade, por sorte, o reverendo, que estava regando umas plantinhas como se desocupado. Mas não. Ele parecia gentil. Um olhar amigável ao menos. Eles ainda existem, disse para mim mesma. Padre, confesso que pequei. Falei sem demora. Diga minha filha. Devorei biscoitos tortinhas de chocolate acompanhadas de chá matte leão sabor morango enquanto tentava ler Arthur Schnitzler numa hora vaga do dia e achei tudo muito gostoso. 

Acordei desse sonho, que acima descrevo, em estado contemplativo no meio da noite mirando o escuro. Refazendo-o mentalmente com esperança de não perdê-lo ao romper da manhã, adormeci novamente. Entretanto, acabei por esquecê-lo temporariamente e dias se passaram até que, enquanto eu brincava com o filhote num parque da cidade, a lembrança onírica me invadiu a mente de novo - ela enfim havia voltado.

Me deixei ficar só na companhia dos dois: do meu filho e do meu sonho no meio do parque. 

Ele, meu filho, brincava no escorregador. Antes de soltar as mãos e se deixar levar pela força da gravidade, olhava para mim e sorria com os olhos triunfantes. 

Mas que sonho bobo, pensei e me repreendi. Algo desrespeitoso até. Mas não desonesto. Pelo menos isso. Sem entrar naquele momento num labirinto de análises ri um riso curto e rápido que saiu mais parecendo uma expiração. Sorri de volta para o Otto. Sonhos nunca são bobos, me corrigi, claro, enfim, eu sei.  

De onde estou vejo o Otto subindo com habilidade as escadas do escorrega, entre os outros, seu brinquedo favorito. Lembrança que me vem como se fosse presente e não passado. Revivo-a agora com intesidade e expresso-a usando o tempo verbal adequado.      

O sol já ia se pondo, mudando de cor, estava ficando laranja. O entardecer combina mesmo com parque. Há o burbirinho das crianças que levado pelo vento, espalha os seus sons pelo ar e parece encantar tudo. Há adultos tentando relaxar fazendo atividades físicas ou não e os animais domésticos que passeiam com seus cuidadores conferem ao momento um alento incomum. Das árvores passarinhos observam os passantes e no lago do parque, nas beiradas, tartarugas, peixes e patos recebem os visitantes curiosos como se fossem anfitriões. 

"Já está tarde", eu disse quando olhei no relógio do celular. Envolvida pelo cenário bonito que se dispunha ao meu olhar, peguei meu filho no colo e caminhei até a saída do parque. O sonho que julguei divertido a nos acompanhar em pensamento. Em silêncio, eu ainda ria daquela graça só minha. 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Isla Negra

Chegamos em Isla Legra embaixo de chuva e rajadas de vento forte. Em plena tempestade foi que descemos do ônibus que nos trouxe de Santiago. No local as placas com avisos e setas que indicavam "em caso de tsunami por aqui" me assustaram. Decidi ignorá-las e reconheci ao mesmo tempo uma certa excitação diante delas. Loucura. 

Com a ventania meu guarda-chuva preto virou ao contrário. Segui com passos apressados tentando me desvenciliar do vento que parecia estar em luta comigo como pude. Meu sobretudo também preto foi o que me protejeu um pouco do frio e do aguaceiro que descia com vontade dos céus sobre nossas cabeças. O clima estava sombrio quando chegamos em frente à casa de Pablo Neruda (hoje museu). Meio escuro às três da tarde. Dei graças a deus, me senti abrigada. Pensei que dia para visitar este lugar. 

Ao entrarmos percebemos que a tormenta fizera suspender a energia elétrica. A casa de Neruda, hoje museu, estava mergulhada em escuridão, iluminada apenas por uma e outra luz de emergência. Aos poucos algumas velas foram acesas. "Acabou de acontecer". Deduzimos. E torcendo para que nossa visita não fosse suspensa por causa da falta de energia, fomos até a bilheteria. 

Bilhetes comprados, tudo ok. Adiante com o tour. 

Comecei a achar que aqueles contratempos estavam cooperando para dar mais graça à visita e a fazer com que ficasse mais interessante, afinal, espantando meu mau humor. Sentia as barras das calças ainda úmidas da água da chuva gelando minhas canelas; Meu cabelo arrepiado pelo vento e meu rosto empalidecido deram-me um ar curioso - observei no reflexo do vidro de uma janelinha da casa do poeta. Lá fora o mar que estava agitado me distraiu. Ondas dançantes faziam seu espetáculo pelos ares impulsionadas pelo vento para depois sob a espuma branca escorerrem mansas até a areia fina da praia. As águas do mar se misturavam no ar em gotas com as águas da chuva. 

Dentro do museu em trevas segui bisbilhotando com os olhos os pertecences do poeta que, como tantos, também foi diplomata. Um homem bem relacionado e de maneiras extravagantes, sabia traduzir em palavras suas questões e assim ilumina algumas nossas. Não era em definitivo um simples mortal. Eu o vi como um homem muito forte. Característica que contrasta com uma certa fragilidade que às vezes é atribuída aos escritores e também poetas porque usando sua sensibilidade falam eles muito do que é frágil em nós quase que em um arroubo.  

Depois de ter sido capturada por um par de quadros pendurados numa sala de jantar onde me estendi por um longo tempo, absorta, terminei a visita do lado de fora da casa. Lá havia um pequeno jardim junto à praia onde uma âncora estava meio que enterrada. O vento seguia firme àquela altura queimando minhas bochechas à toda e fazendo meu cabelo voar sem disciplina alguma. Pablo Neruda não gostava de navegar. Talvez a âncora ali representasse seu apreço pela terra firme a despeito da paixão que sentia pelo mar, pode ser que alguém tenha dito. Era o seu jeito de fazer fincar o desejo (no sentido psicanalítico do termo). E esse era um jeito meu jeito de pensar. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

A companhia de Isabel Allende

Gosto de pensar que os livros com seus personagens, cenários, contextos e escritores nos fazem companhia. E, de longe, essa não é uma ideia minha. Basta ler "Para que serve a leitura?" capítulo da obra "Ler o mundo" da antropóloga francesa Michèle Petit para ampliar esse modo de ver e perceber o quanto esta é uma ideia amplamente compartilhada por leitores. Entre outras coisas, diz Petit também que "ler serve ainda para encontrar uma força e uma intensidade que acalmam, um inesperado que faz reviver a atividade psíquica, o pensamento, a narração interior". 

Foi assim, sentindo necessidade dessa companhia peculiar que encontramos quando abrimos um livro e nos envolvemos com as palavras que eles contém, que me aproximei de "A casa dos espíritos" da escritora Isabel Allende que já ocupava um lugar em minha estante há cerca de um ano. 

Se fizermos uma busca rápida veremos que o ano da primeira publicação desta obra foi em 1982 e que também consta como livro amplamente reconhecido pelo público e pela crítica. Isabel Allende, escritora premiada, com obras traduzidas para diversos idiomas, de nacionalidade chilena embora tenha nascido em Lima no Peru, vive atualmente nos Estados Unidos (gosto sempre de me pôr a par desses detalhes também). 

"A casa dos espíritos", livro que em 1993 virou filme nas mãos do diretor de cinema dinamarquês Bille August e que conta com atores com Meryl Streep, Antonio Banderas e Winona Ryder, nasceu durante o período de ditadura chilena (1973 - 1990), período histórico em que Salvador Allende, o então presidente do Chile, foi deposto de seu cargo por um golpe de Estado. Salvador Allende era primo-irmão do pai de Isabel, o diplomata Tomás Allende. "A casa dos espíritos" é um livro marcado, portanto, por esse período da história do Chile. 

A obra que se estende ao longo de 464 páginas (tenho em mãos uma edição da "Coleção Folha - Grandes nomes da Literatura"), narra uma história que atravessa um século inteiro. O país que dá aos complexos personagens margens e um contexto geográfico tem sua identidade não revelada. O leitor sabe, no entanto, que a sucessão de acontecimentos se dá na América Latina, em algum lugar muito distante da Europa, onde está acontecendo uma guerra e da qual pouco se tem notícias. 

Inicialmente tive alguma resistência para me entregar à leitura. Estava alhures, minha capacidade de concentração focada em outro lugar. Precisava relaxá-la um pouco de modo que fosse possível desviá-la para onde, naquele momento, eu a queria. Assim, insistente, agarrando-me em cada palavra, segui o ritmo das frases, atravessando parágrafos imergi páginas adentro e logo passei  a integrar-me à obra que eu tinha nas mãos como que em processo de infusão e a li num fôlego compassado - quase sem parar.

Por um instante o clima inaugural deste livro transportou-me e trouxe à memória lembranças de Macondo, cidade fictícia de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez). Um insight passageiro que me pôs em contato com o gênero do romance de Isabel Allende, o realismo mágico. Essas pontes sempre são interessantes para quem lê, mas é coisa quase inútil dizer. 

A leitura vale muito! 

Vou deixar aqui um link com uma resenha muito boa e completa de "A casa dos espíritos": 

https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/casa-dos-espiritos/5305