segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Universo Amelie, nada demais

Para não partirem as memórias ao Deus-dará, começo, só por hoje, o trabalho de guardar as escolhidas dentro de uma crônica, que também tem seu prazo de validade, já sei. Esqueço por um momento, decido, a perecibilidade da vida e vou em frente. Não é bem uma questão de nostalgia, de cultivar diferentes formas de saudades do que vai ficando, das paisagens, dos caminhos, que seja. É antes de mais nada, mais uma questão de exercício, tentativa de organização dos dias que vão passando e que, se descuidarmos vão virando um amontoado de coisas na nossa mente, gavetas, armários, diários e fotografias. 

Como quem vai a algum lugar mesmo, volto a São Paulo capital. Quero resgatar lá, no meio da selva de pedras, alguma delicadeza, algo de principal para mim. Logo percebo que nem é muito difícil e começo a perscrutar os porquês. Consulto anotações, fotos, expressões que registrei em imagens e notas num caderno. O ano aqui não importa tanto porque as lembranças não respeitam mesmo a ordem cronológica das coisas, elas se embaralham. Entram pelas frestas do presente e agitam a mente feito crianças alvoroçadas querendo brincar. Flutuam sob a ordem de um tempo diverso, diferente desse tempo pautado por horas seguidinhas que serve para atravessar o dia e organizar a rotina. 

A ideia de ir veio tempestivamente e apesar de parecer, aquele não era um passeio sem destino. Visitar a exposição "Desvendando o Universo Amélie Poulain" em que quinze artistas lançaram seu olhar sobre famoso filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain" (2001), do diretor francês Jean-Pierre Jeunet, era o pretexto fundamental, para nós, uma aventura mesmo, mas longe de perigos reais. Estávamos de férias e havia ainda alguns poucos dias para gastar. As passagens estavam baratas e resolvemos comprar. Lá fomos. 

Só mesmo com uma mochila de mão embarcamos no avião, Wagner e eu. Íamos com a distração daqueles que buscam com o que preencher as horas vazias de um fim de férias. Já em São Paulo, Avenida Paulista, a exposição estava instalada em cima de uma loja cuja matriz fica na França e que hoje só existe no universo virtual. As instalações físicas viraram pó, imagino, porque nunca mais voltei lá, mas vi as notícias pela internet que a loja fechou. 

Voltando à exposição, a simplicidade dela foi o que de primeiro me impactou. Num café, as ilustrações dos quinze artistas coloriam as paredes. Não havia luzes, glamour, tampouco molduras pesadas ou cheias de rococó para sustentá-las. Coisa que acho bonito, mas que lá não havia. No lounge um barista atendia pessoas à mesa e decidimos sentar para tomar algo antes de imergir nas obras. Optei por um chá de citrus: laranja com abacaxi e canela. Não resistimos ao cardápio e depois do chá veio um waffle com doce-de-leite, que dividimos. Conversamos. Apreciamos nossa presença ali. A companhia das obras também. Fiquei pensando no filme de Jeunet enquanto falávamos trivialidades. 

Desvendando o Universo Amélie Poulain, a exposição, enfim. 





Eu estava encantada e enquanto observava as coloridas ilustrações penduradas na parede troquei algumas impressões, além de lembranças que diziam respeito à obra cinematográfica, com uma garota que estava por ali fazendo o mesmo que eu. Nos indicamos filmes. Ela me sugeriu "Eterno Amor" (2004) e eu sugeri a ela "Jonh Spivet: uma viagem extraordinária" (2014), ambos do mesmo diretor de Amélie. Quando voltei a Blumenau anotei tudo em detalhes, porque é claro que não foi só isso. E além dessa exposição teve Vila Madalena, Beco do Batman, passeio de bike no Ibirapuera, no Villa-Lobos também, MASP, pizza, livraria gigante e bem pequenininha. Mas lembrança mesmo, o registro mental, restou assim meio vaga e bonita pra mim e é assim mesmo que quero ela fique, por fim. 

Grazielle Monica G. Pansard

No link a seguir é possível conferir a curadoria e o nome dos artistas que participaram da exposição https://catracalivre.com.br/agenda/filme-de-amelie-poulain-e-tema-de-exposicao-na-fnac-da-paulista/

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Do Desejo

O anel de turquesa de Karina era a promessa de que tudo iria mudar. Desacreditou. No cais, onde estava, desembalou do papel em cor azul a maçã que nele estava envolvida. Fitou as ondas e jogou a promessa no mar. A maçã ela comeu e o papel amassado usou para escrever um bilhete importante:



Desejo a você 
uma canção de Frejat
que você saiba existir
e que tenha a quem amar
para ser correspondido. 
que haja canteiros floridos
rimas que façam sentido
alegria sem previsão para acabar. 
no domingo, 
um almoço com espumante
e frutas frescas no quintal.
sol ameno, brisa fresca. 
que a liberdade entre só
pela fresta e te faça 
suspirar, respirar
devagar
e sem pressa. 
Ate te domar inteira. 


                                                                                                             Grazielle. Verão, 2021. 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Dentro de mim ninguém entra também

Que o mundo está virado de cabeça para baixo mesmo não é novidade para ninguém. É só prestar atenção nos mais antigos termos "no meu tempo era assim" ou "no meu tempo era assado", que também não era fácil.  Para uma mãe, então, como todas as outras e que só quer o melhor para sua cria, do jeito que as coisas vão indo as preocupações só aumentam. Não há como negar. Assim, preocupada, levo meu filho para vacinar. Ele já tem cinco meses de vida e hoje, dia em que escrevo, é também dia de tomar a vacina meningocócica C. Como consta na página meu calendário de vacinas ela ajuda a proteger contra uma infecção causada pela bactéria Neisseria meningitidis e que, sendo grave, pode levar a morte. 

Mas, por que digo que fui preocupada? Porque tenho medo da distração das pessoas. Tomo então uma decisão. Decido que confio na ciência, na equipe médica também e vou. Levo meu bebê de cinco meses ao ambulatório mais próximo da minha casa para fazer o rápido procedimento e, seguros, voltamos para o lar. 

Esse acontecimento me fez lembrar de um livro cujo título "Dentro de mim ninguém entra" (José Castello e Arthur Bispo do Rosário) me ajuda a pensar que somos nós, em última instância, quem decidimos as ideias que entram e não entram na nossa cabeça. Assim, quando com os olhos li  (tem gente que ainda lê com o coração em dias como os de hoje) "dentro de mim ninguém entra. pensar nessa frase me encheu de uma liberdade esquisita", lembrei também do "jogo da amarelinha" brincadeira de criança que consiste em uma pedrinha ser lançada ao chão pela criança que está a jogar, com vistas a alcançar uma das casinhas desenhadas com giz colorido. Feito isso, ela deve pular sobre as casas vazias, num-pé-só até chegar no céu sem se desequilibrar ou pisar nas linhas. Mas essa lembrança nem faz muito sentido aqui. Foi só um devaneio gostoso de ter. 

Acervo pessoal

Na história ou estória - para quem preferir escrito assim, contada nesse livro de Castello e Bispo, tudo se passa num quarto de hospital onde há um menino supostamente doente. O menino que inicialmente não se apresenta passa a se chamar Arthur I e com esse nome parte para uma aventura imaginada, uma história que ele mesmo conta e escreve enquanto está preso naquela cama de hospital. Que alguém possa inventar e escrever histórias em condições como essas só mesmo em livros! Porque, pudera! Não é fácil estar doente. 

O livro lindamente ilustrado por um artista em sua época não reconhecido como tal, Arthur Bispo do Rosário (1911-1988), pois que viveu boa parte de sua vida como interno do manicômio Juliano Moreira em Jacarepaguá, é, do meu ponto de vista, uma obra de arte que julgo poderia se tornar, imagino, um clássico da literatura infanto-juvenil. Precisamos tanto de livros assim. Importante dizer que o livro é como um manual de sobrevivência em dias difíceis, pode ser lido tanto pelos mais jovens como por adultos. Assim como "Alice no país das maravilhas", ensina a ter coragem e, principalmente, a não fugir da própria solidão, porque entrega ao leitor palavras que podem ser companhia de verdade. 

Pensar essas coisas também me fez voltar mais uma vez à minha estante, onde reencontrei ainda o livro "Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio" da socióloga e historiadora Marta Dantas. Folheando suas páginas fui capturada, por ser tão interessante, pela Parte III deste livro, ela intitulada "A criação do mundo encantado" onde a autora discorre, segundo sua interpretação e dialogando com outros autores, sobre as obras de Bispo, pessoa cuja história-obra vale a pena ser visitada. 

Grazielle Monica G. Pansard. Fevereiro, 2021. 

Lugares visitados para escrever a crônica: 

CASTELLO, José. Dentro de mim ninguém entra / texto José Castello; obras Arthur Bispo do Rosário; Fotos Andrés Otero. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2016. 

DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. São Paulo: UNESP, 2009.

FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Dossiê Arthur Bispo do Rosário. 26 set. 2012. Disponível em < http://www.bienal.org.br/post/351> Acesso em fev. 2021. 

O Ambulatório de Saúde mais próximo da minha casa ;-)