terça-feira, 3 de março de 2020

Vida de fakes ou Hilda Hilst nada meiga (em plena pandemia)


Mentira, Engodo, Morte e Hipocrisia, texto de Hilda Hilst (1930-2004) e que compõe a obra Cascos & Carícias & Outras Crônicas (Editora Globo), embora tenha sido escrito nos anos idos de 1993, poderia ser também uma tentativa de elaboração subjetiva do cenário político-socioeconômico atual, assim como, muitos outros textos desta mesma obra. O que nos leva a crer, que tudo continua de certa forma igual, mesmo sendo diferente. Compreendido sob essa perspectiva, o termo fake e suas derivações, tão presente nos nossos dias, já é um velho conhecido da espécie homo sapiens. De todo modo, sempre há uma pitada de evolução na maldade humana. Se já era difícil lidar com fofocas familiares ou com o cinismo socrático daquele analista psicológico ou, ainda, se já era difícil conviver com o sorriso maroto do colega de trabalho, puxa-saco do chefe, lidar com as mentiras das realidades virtuais é, no mínimo, diante dos anteriores, um senhor desafio. Desgastante. Ano 2018, século XXI, e nós, aqui, ainda. Longe de ser uma brincadeira ingênua e risível, as falsidades digitais – das notícias às identidades, são como mola propulsora para todo tipo de azáfamas entre os seus criadores, a sociedade humana. Origem de muito caos.  

Enquanto a desconfiança cresce, vimos Mark Zuckerberg – criador da maior rede social do mundo, compartilhar com o público suas mais sinceras resoluções de ano novo, entre elas, o combate às fake news e ao discurso de ódio. Digno. Só não muito coerente, já que sabemos que muitas polêmicas giram em torno de notícias falsas e que discursos de ódio giram em torno de polêmicas e que ambas giram em torno de views, likes, comments e ações que mantém o facebook mais vivo e ativo do que nunca. Uma grande e monstruosa máquina, alimentada, também, por afetos e afetações humanas. Assustador, um pouco. Vade retro satanás, que aziago, porque não somos anunciadores do apocalipse - tarefa funesta realizada por figuras contemporâneas, líderes políticos e suas tropas. Não queremos o fim, tampouco acreditar nele. Num tempo de tanta desesperança, não se pode gastar uma fé em vão. Ter fé é acreditar na continuidade do que estamos fazendo por aqui, ano 2018, século XXI. Ter fé é, portanto, acreditar no amanhã e nos recursos que estamos criando para fazer dele um dia melhor.

Voltando às fake news. Somos todos vítimas. Somos todos culpados. Levados por nossos desejos, nossas vaidades, tropeçamos no risco de dar credibilidade, por exemplo, a perfis fakes nas redes sociais, encomendados principalmente pela massa política para ludibriar pessoas comuns em prol de seus interesses e, dessa forma, os perfis ganham primeiro espaço, para depois ganhar votos, para depois ganhar poder. Na mesma esteira, vemos todo tipo de notícias sendo difundidas, por exemplo, sobre intervenções governamentais que se anunciam como uma suposta tentativa de estancar a violência, esta, consequência também de injustiças históricas e falta de acesso à educação adequada, base para muita coisa. Nesse show de horrores, pessoas reais viram alvo das “fake news da vez” sofrendo, o que, simbolicamente, poderia ser uma espécie de apedrejamento em praça pública com efeitos devastadores, muito provavelmente nem imaginados pelos seus carrascos.  Se imaginado, tudo fica ainda pior.  

Diante disso, difícil pensar em uma solução, até porque é possível que ela não exista. Uma solução só, não seria suficiente para um problema como este que é, deveras, complexo. Pensemos, por isso, em várias. Sobretudo, sejamos capazes de fazer escolhas e de sustentá-las. A boa notícia é que, como indicam os escritos de Hilda, o apocalipse sempre existiu e não é autoria nossa, os modernos. Hilda nos exime da culpa de sermos os responsáveis por toda essa desgraça humanoide. Que nos acalmemos, portanto, diante do cenário eternamente caótico talvez não seja o melhor conselho.  Mas, enquanto não tivermos ideia melhor, deixar de querer ter a razão sobre qual seja a solução, para, como num ato de bravura, pôr entre as mãos um livro, pode ser uma saída para não acabarmos como Dom Casmurro, de Machado de Assis, desconfiado até da própria sombra e apartado de si mesmo, fragmentado. Um pobre diabo assombrado pela sua imaginação que, possivelmente, não encontrava vazão em livros apenas de advocacia. Aquietemo-nos, se possível for, e entreguemo-nos aos olhos de ressaca de personagens como Capitu, de Machado, e tão lindamente cantada por Luiz Tatit e Ná Ozzetti (álbum Rodopio, 2007).  Mesmo que soe piegas, uma ideia ultrapassada. Em tempos de epidemias de fake news, que a leitura, acompanhada de alguma pesquisa, seja nosso remédio e salvação.


Verão, 2018.

Acervo pessoal