sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Pensando alto

Quando a alguém vem uma necessidade de escrever que se manifesta até incômoda, uma vontade de se expressar no mundo sem necessariamente querer mudá-lo - pois sabendo seu tamanho nem pensa nisso, resta a esse alguém senão outra coisa: escrever. Mas mesmo que não se importe com mudar as coisas quem escreve, algo sempre muda depois de um ponto. Um estado de ânimo pode mudar. Escrever pode levar a determinadas ações como a arrumação de uma bagunça interior, subjetiva, de algo passado, vivido - o armário do quarto dos fundos da psique. Ação que é capaz de provocar um movimento maior. Outras vezes um mundo novo pode ser criado para o leitor viver enquanto lê, quando se cria uma história. Escrever leva alguém a pensar. 

Mas, será que a esse alguém a vontade é de tão somente se expressar ou de invariavelmente escrever como forma de expressão, distingue? Talvez as duas coisas, que se complementam ao atender uma necessidade. Claro que expressar-se não se restringe ao ato de escrever. Pode-se expressar um estado de espírito varrendo o chão com um ar distraído ou com muita atenção; ao fazer um bolo com entusiamo ou não; ou ainda um prato para o jantar. Ao ligar para um amigo. E ao deixar o tempo passar. Expressar-se pintando, dançando, ao cantar e tocar um instrumento musical. Enfim, nas formas de arte, esse lugar sublimado e propício de se guardar a vida. 

Mas quando escrever for a escolha de alguém, se torna uma prática cotidiana, um modo intencional de experimentar a vida de dentro das palavras. Uma forma de se deixar nas coisas. Sim, um modo de se deixar no mundo, onde nossas marcas ficam de um jeito ou de outro. Um caderno velho com palavras escritas dentro dele numa gaveta, como uma caixinha de parafusos de não se sabe o quê, ou pilhas gastas, algo de si ali. 

Penso no escritor amador. Escritor de brincadeira, de caderninhos, de bloco de anotação, de blog, das margens de livros que outros escreveram. Escritor de tempo livre, que só pode e consegue escrever se os demais trabalhos estiverem em dia, de acordo. Penso agora em Cora Coralina. Em Manoel de Barros. Nos mestres. E naquele que escreve só pelo prazer de ver o desenrolar das palavras dentro de um texto. Mesmo para ele escrever é deixar o pensamento respirar e isso muda tudo, pois dá a vida interior a chance de continuar a viver. Ainda que isso não mude o mundo, muda o mundo de alguém. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Mania de ler

É de uma vontade insistente e boa parte do meu tempo livre invisto em leituras. Encontro nas palavras um certo tipo de companhia que de outro modo não encontraria. Tenho lido alguns contos, de vez em quando poesia, enquanto dou continuidade a um romance. Também gosto de ler livros que falam sobre livros. Esses me ajudam a ter um olhar mais crítico, a compreender melhor a estrutura de um texto, ampliam e organizam  possibilidades interpretativas, me fazem olhar com outros olhos, mais apurados, os personagens e os seus mundos. Me ensinam sobre o próprio processo de leitura. 

Ler faz o pensamento se mover, reavivando a atividade psíquica e o mundo interior. Citando Michéle Petit, os textos lidos devolvem ao leitor ecos mais profundos dele mesmo. Ler é um modo de se conhecer. De aprender algo sobre si (e claro, sobre o outro, sobre o mundo também!). Clarice dizia que é possível aprender de dois modos: lendo e vivendo. Ler é um modo de viver. Sou, no entanto, uma leitora comum. Preciso de me esforçar para guardar algumas informações que durante as leituras absorvo. Leio devagar e lanço mão de ferramentas, anotações, busco às vezes saber o que outras pessoas estão dizendo ou já disseram sobre o tema/leitura em questão, em alguns casos. Socializo. 

Às vezes leio com disciplina, com a calma de quem descasca uma mandarina para em seguida desfrutar seu sabor. Outras, em ardor, aos saltos, vou de um livro para outro, como quem persegue uma pista. Uma pista sobre o que possa ser a solução de um enigma interior, que sempre se abre e desdobra em outros. Se torna assim o atendimento de um desejo. A dissolução de uma angústia; ações que nos fazem ser quem somos. Ler ajuda-nos a elaborar a vida que é tecida nas mais corriqueiras das situações também. 

Para fechar, vou deixar aqui com esse breve registro sobre minha relação com a leitura, as principais do momento. Concluídas e em andamento. Não incluí as leituras que faço com meu filho pequeno, porque aí não são as minhas, mas as dele. Também não incluí aqui blogs ou jornais literários que acompanho como o Rascunho e o Publishnews, por exemplo, cuja algumas colunas muitas vezes me dizem tanto. 

Contos
Bola de cabelo, O homem do brejo - Margareth Atwood 
A balada do café triste - Carson McCullers
Palhaça - Raquel Abend Van Dalen 
Felicidade Clandestina (revisitei) - Clarice Lispector 
Toda luna, todo año - Lucia Berlin

Romance
Beleza e tristeza - Yasunari Kawabata

Poesia
Varandas e outras - Sophia de Mello Breyner Andressen
Hilda Hilst 
Rique essa palavra, A porta de saída, Religião -  Ana Martins Marques
Ana Cristina Cesar 

Livros sobre livros
Ler o mundo - Michèle Petit 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Só para mães

Observo como brinca no chão da sala de estar do nosso ap de faz-de-conta meu filho que está para completar dois anos de idade logo, logo. Dando funções novas a alguns objetos que o cercam, funções diferentes das usuais, ele se entretem por algum tempo abosorto. Os blocos magnéticos viram uma espécie de massa dentro de forminhas de silicone, ao que ele nomeia "fubá", referindo-se, deduzo, ao bolo que com alguma frequência fazemos juntos. Peças de lego, além de servirem para construir objetos variados que brincamos ser esculturas, quando não animaizinhos ou bonecos, automóveis, bem normal, se transformam também em "café" dentro do seu bule mágico. Noto ainda como ele começa a compreender as funções de uma ficção sempre que lemos um livro para ele. Também dá sinais de que percebe suas possíveis relações com a realidade. Outro dia mesmo, no mercado, foi um exemplo disso. Bibo, um coelho, é no momento seu personagem predileto. Apresentamos recentemente um amigo seu, Gildo, um elefante bastante corajoso, cujo um medo que tinha conseguiu superar. (As fábulas a que me refiro foram originalmente criadas pela escritora e ilustradora Silvana Rando e valem muito.) 

Quem será, no entanto, meu filho, nos momentos em que não estou junto para acompanhar seus movimentos, me pergunto. Quero dizer em ambientes socais, que há bem pouco tempo passou a frequentar com reguluridade, como a escolinha por exemplo. É verdade que antes disso já haviam os parques, alguns restaurantes, o ambiente urbano que o circunda, as depedências do condomínio, a casa dos avós, de alguns amigos e parentes, nosso próprio lar, os lugares todos que visitamos e que formam os ambientes sociais que ele desde antes da escolinha já frequentava. Bem, quando estamos juntos vejo quase tudo: presto atenção com os olhos do sentido também e mesmo assim algumas coisas às vezes me escampam, pois, humana, tenho falhas. Não tenho olhos atrás da cabeça ou um braço nas costas, menos ainda, asas nos quadris. Ao correr, feliz, ele tropeça e cai. Chora, se machuca um pouco. Não vi. Que coisas piores possam acontecer num átimo de distração, meu Deus que o livre. Repito essas palavras em quase oração sem respirar para que dentro de mim elas ganhem em densidade e frutifiquem. 

Que eu, no fim, não possa saber literalmente quem ele por inteiro é, especialmente quando não estamos juntos, faz parte do mistério que me seduz - mas não impede minha curiosidade de imaginar e questionar mesmo. Fico, bem mãe, pensando em como ele se comporta na hora do lanche com os coleguinhas na escola; se relciona bem com os profissionais da instituição; de que será mais gosta de brincar lá; quais são os gestos de que lança mão quando sugere algo para os seus mais novos amigos; que papéis assume junto à sua turminha, durante as brincadeiras; Faz birra longe de mim? Em que momentos prefere brincar sozinho; gosta de contemplar e brincar com a natureza do jardim ou passa mais tempo no parquinho, brincando  de bola, casinha, balanço? Como explora os ambientes na minha ausência? Como está vivendo a relação com os outros? Como sorri quando olha para a professora? Para essas perguntas tenho as respostas, pois nossa comunicação com a escola que escolhemos para Otto é boa. Mesmo assim, existem aspectos dele, do todo que ele é, que seguem sendo um mistério para mim. E essa é a parte fantástica da história. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Berlim

Em julho de 2019 chegávamos em Berlin, esse canto do mundo onde ficamos por oito dias. Bem hospedados na Ilha dos Museus, distrito de Mitte, fizemos longos passeios que nos davam à vista, o Rio Spree. Do nosso hotel podíamos ir caminhando até o Bode Museun, o Pergamón e o Neues, onde vimos o Busto de Nefertite. Era pertinho. Um dos momentos de que me recordo com vivacidade é da nossa subida a Berliner Dom por dentro, imponente catedral, que em sua torre oferece um panorama fantástico da cidade. Para chegar lá sobe-se por estreitas e intermináveis escadarias, que em formas circulares nos desequilibram o labirinto, mas a recompensa é certa. Na mesma vibe, só que com menos esforço pois se sobe de elevador, visitamos a Fernsehturm logo depois de passar pelo famoso Relógio Mundial, o Weltzeituhr, na Alexanderplatz. Foi ali que vimos, numa noite, um brasileiro teatreiro apresentar sua arte no meio da praça repleta de espectadores que se sentavam aqui e ali para assistir a sua peça. Nós também ficamos e a assistimos até o fim, como se estivéssemos em casa.  

Nosso tempo em Berlin nos trouxe momentos imprevisíveis em que ficamos absorvidos. Lembro-me aqui das espécies inusitadas de peixes e animais que vi no Aqua Dom & Cia, politicamente incorreto até, alguém poderia dizer. Da sensação que dá quando diante de um viveiro de inseto de tipo duvidoso se pára por um instante e olha; da perplexidade que se sente ao observar o modo de funcionamento de uma água-viva ou várias que flutuam no interior de um vidro gigantesco com água dentro a pouquíssimos centímetros de distância da gente. O mundo é surreal. Nem vou falar dos castelos. Do Palácio do Reichstag, do Tiergarten, do Portão de Brandemburgo. O Olympistadion. Lugares bastante comuns quando se pensa na capital da Alemanha. Não vou falar ainda do schnitzel deles que comi. Do spätzle deles também e da cerveja de banana que experimentei na Sony Plaza, bem turista. Precisaria de detalhes que não alcanço em palavras para descrever essas experiências. 

Num dia de manhã, depois de deixar o hotel, alugamos uma bike elétrica e fomos visitar um aeroporto abandonado, o Tempelhof, que serve aos berlinenses como parque. Foi o passeio de que o Wagner mais gostou de fazer, ele diz. Eu também gostei, foi bastante contemplativo. No aeroporto abandonado  observávamos o vazio enquanto não parávamos de pedalar. Era verão na Europa e fazia bastante calor. 

A viagem terminou, mas as coisas não pararam de acontecer. Poucos meses depois veio a pandemia. Também tranquei a faculdade de Letras; tive um filho; mudei de profissão; afirmei meu casamento; mandei um e-mail para um escritor que amo dizendo que eu existo e ele me respondeu; consegui fazer um bolo que a receita eu achava difícil; li livros de autores desconhecidos; investi em algumas ideias enquanto desistia de outras. Em Berlin eu só estava lá deixando que a vida fosse o que ela poderia ser. E ela foi maravilhosa. No fim eu só tinha duas ou uma certeza: quando amanhecesse voaríamos para Amsterdã. Segui em frente mesmo assim e já faz três anos. 

terça-feira, 19 de julho de 2022

19 de julho

 "Ler é como pensar, como rezar, como conversar com um amigo, como expor suas ideias, como ouvir a dos outros, como ouvir música, como contemplar uma paisagem, como dar um passeio pela praia". 

Fonte: site homoliteratus.com

Ao ler esse trecho famoso do livro 2666 do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) me acalmo: enquanto leio, faço muitas outras coisas também. Quantas vezes cativa de minha própria ficção, sinto-me liberta pelo ato da leitura dos livros que me rodeiam e que me abrem as portas e janelas da casa que sou. Sem mais estar encerrada, continuo a viver e vou para outros lugares, me desloco, ando por caminhos ainda não visitados, exploro, rio, choro, surpreendo-me e sinto tédio. Conheço personagens que ficam amigos - ou não, e que ajudam também a viver o mundo fora dos livros, onde, que sorte, temos amigos também. A arte cumpre seu papel. Movimento-me por entre as palavras e faço o espaço que me compreende expandir. Me coloco a praticar a vida possível, nela me reinvento, e assim sou feliz. 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Deriva

Sempre seria alguém que

escrever precisava de

aprender. 

Superado esse fato

continuava escrevendo. 

*

Sobre a pia a porcelana branca, lavada 

o chão da casa, varrido 

a roupa suja - posta para lavar 

arquejava de dentro da máquina.

tudo pronto:

flores enfeitando a mesa.

se havia preparado

em detalhes 

para receber 

uma alegria nova. 

*

Na manhã modorrenta

ficou recolhida dentro de um poema

e não viu quando o tempo 

sem fazer alarde passou.

Sintetizou que foi uma morte necessária, 

aquela das horas.  

*

Pois que nem tudo morre,

revelou numa crônica de

Hilda Hilst, Descida, a frase. 

E o resto do dia ainda estava lá

por graça  

entardecia, o céu, a noite, depois seu crepúsculo, 

alvorada.

Da janela de brancas cortinas de linho

se via 

o horizinte, o vinho, o jantar  

a companhia 

a criança brincando 

o chão da sala de estar

tudo lá 

correndo, correndo

a vida

por graça. 

sábado, 16 de julho de 2022

Arpejos

Foi enquanto lia

Virginia Woolf  

que vi a linha do horizonte

em página de livro se abrir 

e iluminar em tomos 

as cores do entardecer. 

*

No ontem mazelento 

tive lembranças de uma história 

   vívida - saudosa 

pois que em fôlego trôpego

o livro já lido reli do início ao fim

  e o deixei para trás. 

*

Não era bobagem.

Era minha vontade 

  de ler 

Ana Cristina César. 

*

Revisada a lista

certifiquei o carrinho de compras 

para o jantar hoje

só livros

escrito por mulheres

e um tim-tim. 

*

Com o tempo

talvez a gente 

aprenda

a aceitar os próprios limites

e aprenda

e respeitar a necessidade 

que se tem 

de escrever 

(ler entrelinhas viver)

do jeito que lhe for próprio 

mesmo que alguém 

ache graça dessa formulação 

pequena

e rindo

se ache maior

que ela.  

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Escrever e Manoel

Há dias

que escrever não consigo   

vira um tormentozinho silencioso. 

A hora que vejo passar 

em página branca 

lânguida, vazia de mim caçoa. 

Então, de quebra, resolvo tomar de empréstimo

um poema de Manoel de Barros 

para me defender deles e

tentar desafogar os sentimentos presos 

que ficam. 

(Desafoguei uma alegria sucumbida.)

.

.

"O que não sei fazer desmancho em frases. 

Eu fiz o nada aparecer. 

(Represente que o homem é um poço escuro. 

Aqui de cima não se vê nada. 

Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver o nada.) 

Perder o nada é um empobrecimento."

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 63

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Trivial, mas nem tanto

Deixo para escrever depois porque primeiro preciso ler mais uma vez um conto de Lucia Berlin. Assim uso meu tempo livre que também é contado e mergulho não só em suas palavras como também no que elas me trazem. Amparada pela ideia de que ler é uma forma de escrever, me alivio dessa necessidade que surge incômoda. Enquanto leio penso na escritora Luizza Milczanowski, autora de "O Diálogo", que disse que os pensamentos também escrevem. O livro dela ainda não li mas quero. São tantos os quereres, penso um pouco cansada. Procuro me despertar. Às vezes acredito que posso adiar escolhas. Até virar em mais angústia. Então o desejo declina porque tanto não cabe. Aí, o vazio, nada. E o ciclo recomeça. Escolhas são feitas. Raciocínio lento. Se escrever é uma forma de dizer e se pensar é uma forma de escrever, de ambos os modos alguma coisa se faz. Paz. Abandono por hora minha meditação depois de ler e me concentro em outros aspectos práticos do dia pois preciso. Sobre a mesa vejo o livro "125 brincadeiras para crianças de 1 a 3 anos". O folheio de novo algo divertida com as páginas coloridas e escolho duas ou três atividades infantis para ter em mente. Mães precisam de cartas na manga. Muitas. E aprender sempre. Conheço mãe que acredita ter só aos filhos a ensinar. Mal sabem que assim se afundam em ignorância e afastam de si suas crias. Mas toda mãe merece ser perdoada. Merece, não? Largo de mão minha discussão interna e saio para me exercitar deixando meu pensamento ocupado com brincadeiras que no livrinho da Jackie Silberg descubro e deixo que se desdobrem em mim as suas faces - as faces do brincar. Em casa, alheio às minhas questões, na pia da cozinha, o feijão de molho espera o momento certo de ser cozido, mas eu nem penso nisso. 

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Da lembrança, o forno à lenha

Da cozinha aquecida lembro do forno à lenha da mãe de minha mãe. Da lenha, que áspera, com cuidado, colocávamos portinha de metal toda trabalhada a ferro e fogo adentro do braseiro. E a madeira ligeiro chamuscava. Pontinhos de brasa voavam e voltavam pro chão. Era bonito de ver. Eu me encantava equanto o fogo nos olhos brilhava. Bem ali um inferninho particular que nos servia a todos de maneiras variadas. O fogão aquecia a cozinha e no frio nos aquecíamos também. Seu crepitar sonorizava o café da manhã que era feito cedo. A labuta no campo tem um tempo todo seu que exige. Minha avó era exigida. Feita às águas com açúcar para acalmar.

Agora sento à mesa da minha cozinha também aquecida para escrever. Ainda não chegamos no inverno, mas já uso o aquecedor pela casa. Temos casas que no inverno são frias e no verão calorosas. Apesar de fazer sentido podia ser o contrário mas não é. Assim nos obrigamos a ir em busca de recursos para lidar com a situação e fazemos a economia girar, diria um capitalista. Volto à cozinha. Aqui me sinto acompanhada. De panelas? Dos ingredientes do prato que em seguida devo cozinhar? Pode ser que sim, brinco comigo mesma. Leio um poema de Adélia Prado. Trago o livro de crônicas de Nina Horta à mesa e me sirvo mais um café. 

Lá fora o trânsito do mundo que exige também faz barulho. As pessoas que correm contra o tempo, apressadas, se esbarram. E eu que não estou à espera nem nada, sentada olhando pro relógio, fico em silêncio. Penso em minha avó e a faço reviver Im Memoriam bem aqui, nesse texto, que delicado, sai de mim.  

Margaridas ou crisântemos? Flores do sítio onde morava minha avó

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Leitura amiga

Entre Nabokov e Noll, obras que nos últimos dias leio, ouço Zélia Duncan para aliviar o peso dos cânones e a tensão que sinto nas costas, logo abaixo dos ombros. A música ajuda e me reascende uma saudade afogada. noto que sinto falta de ler também "Desassossego", livro de Pessoa, como se sente falta de um amigo. Faço jus a minha falta e num arroubo,  furtiva, o visito em meio a pressa. Encontro nas suas páginas palavras e descanso. Me sinto pronta para prosseguir. Em fé às vezes me movo. Mais tarde vou até o mercado da esquina para comprar os ingredientes da janta e no caminho me distraio com a beleza das flores que estão à venda e se mostram  numa vitrine de floricultura. Mas não sou Mrs Dallowey e está tudo bem mesmo que alguns não me compreendam em momentos como esse. Deixo assim que o possível se projete, por hoje, sem mais. E não deixo de escutar, ao pé do ouvido, a letra da música de Duncan enquanto dou cabo à vida: "ser quem se é / aceitar o que não deu pra ser / receita para não sofrer / não ser perfeito mas ser você". (Continuar lendo). 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

A fúria de Noll: isto não é uma resenha

Li a obra "A Fúria do Corpo" do escritor gaúcho João Gilberto Noll depois de participar de um dos encontros online promovidos pela Casa Quarup a respeito do livro e de Noll. Na ocasião, muito especial, em que pude participar, um irmão do escritor também se fez presente enriquecendo ainda mais o encontro com suas palavras e presença. Antes daquele encontro, anos antes, eu já havia lido um artigo do jornalista e também escritor José Castello sobre Noll no seu livro "As Feridas de um leitor", de onde pego emprestado parte do título que leva este texto. E muito provocada por ele, quis ir a uma obra de Noll assim que conseguisse e cheguei hoje, afinal, à A Fúria. 

Já tenho uma história com Noll. 

"A Fúria do Corpo" de João Gilberto Noll (1946-2017) teve sua primeira edição publicada há 40 anos, em 1981. Escrita no fim da ditadura militar no Brasil a obra perfila, em diversos momentos, o modo como também a vida das personagens é atingida pelo regime. Mas esse é apenas um dos aspectos da obra que, em minha opinião de leitora comum, não acho que seja o principal embora atravesse de modo irremediável o centro de enredo: os corpos das personagens. 

Obviamente esta não é uma resenha acadêmica mas a obra de Noll, a quem não sabe, é objeto de estudo acadêmico também e ouro no meio psicanalítico que sempre tem algo a mais a apontar.  O que faz certo sentido porque é bastante difícil ler Noll sozinho. Algum texto de apoio, alguma orientação são eficazes para que o leitor continue firme seu mergulho na obra do referido escritor, que é ampla e rica em sentidos. No google acadêmico podemos acessar alguns desses textos que não são tão inúmeros quanto os de Clarice Lispector, muito popular nas cadeiras de humanas como em Literatura e Filosofia, mas estão lá. Aliás, pensa-se muito em Lispector e também em Virgínia Woolf enquanto se lê Noll. 

Vamos então a um breve resumo que, mesmo sendo incompleto, pode conter spoilers. 

Temos em "A Fúria do Corpo" um narrador-personagem sem nome que habita um contexto caótico e instável: a vida nas ruas da Cidade, Copacabana, onde perambula-se num vai-e-vem frenético tantas vezes sem direção. Esse é o panorama dado ao leitor e é de onde as cenas em que as personagens são constituídas e desveladas surgem em ritmo vertiginoso até o fim do livro. Mas não só isso. Há Afrodite, a coprotagonista, uma espécie de personagem-refletor, que, entendo, é quem dá o nome ao Amor que existe  neste romance difícil. Além desses dois diversos outros personagens aparecem e vão tomando parte nessa estória que não permite que o leitor queira dormir em cima das páginas por ser carregada de aventuras alucinadas e angustiantes que de tão extremas, beiram o fastio. A estrutura em que o texto nos é apresentado, também não passa despercebida. Os longos longuíssimos períodos em parte significativa do tempo sem a pontuação esperada pelo leitor para facilitar a leitura, devolve a ele o trabalho de dar sentido ao texto lido. 

Não sabemos exatamente como o personagem-narrador-sem-nome foi parar no ponto em que o encontramos. Mas mais para o fim da obra há uma menção dada ao que poderia ser sua família, um momento da sua vida de menino em que também o suicício de um primo acontece. Sabe-se, portanto, que há traumas (como na vida de todos, aliás). Mas, fragmentário, o relato nos é narrado e ficamos sem saber se ele é real ou se é um delírio - ficção dentro da ficção - do narrador que parece portar uma linguagem convulsa, quase verborrágica. 

Ler "A fúria do corpo" é mergulhar, sem dúvida, nas entranhas do que pode vir a ser o desejo de alguém e se permitir não sair intocado dele. É, assim, um ato de coragem. 

sábado, 21 de maio de 2022

A fúria que escoa

Estou no trânsito. O tráfego intenso me faz parar: é o sinal vermelho. Algo distraída me deixo passar pela cabeça o que fiz no decorrer das horas daquele dia e listo, mentalmente, o que ainda me resta a fazer. 

Ajusto o cinto de segurança lembrando do livro que em horas contadas leio e do qual sinto vontade de desistir. Respeito minha vontade, não a rechaço, mas fracasso na desistência; Decido que vou prosseguir. Até o fim quero ir com essa leitura que me chega difícil e que leio como quem cumpre promessa. É o enredo, digo com voz murmurada enquanto olho os passantes que apressados seguem seu rumo. Qual rumo? Não. São as personagens. Como chegaram no ponto em que estão o autor não deixa claro, só dá pistas. 

Por que não leio autoajuda? Ou, me questiono, por que não me preocupo com meus próprios problemas ao invés de me ocupar das personagens que leio? Tenho contas a pagar também. Imagino o que uma amiga poderia me perguntar se eu contasse meu estado aflitivo de leitora e rio. Rio alto e sozinha. Gosto da sugestão que me dou. Vou marcar um café para poder falar sobre essas personagens que enquanto leio são como se fossem minhas e sossego com a ideia de leitora que se apropria do que lê - sempre que possível. 

Na rádio do carro que dirijo, os comentários do jornalista que ignoro solenemente, toca Maria da Blondie e me aninho no ritmo da música. Aumento um pouco o volume e olho para o céu imenso. Imenso mistério azul sobre nós. O sinal verde me diz que posso avançar. A rua seguinte aparece como uma passagem por onde pode escoar silenciosa a fúria daquele dia que chega ao fim e que nem menciono aqui. A leitura me envolve os pensamentos como retrata o relato desse instante. 

São 18h e o sol já se pôs. Abro as janelas. Deixo o vento passar e bagunçar meu cabelo enquanto percebo alguns pontos brilhantes no firmamento, são as estrelas.   

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Meus desvios

Às vezes fico às voltas com os sentidos das palavras e as levo para passear entre outros contextos. Com a palavra desvios, que uso para nomear meu blog, não seria diferente. Penso no seu uso variável e acabo por achar que desvios é uma palavra lisa, escorregadia, pois tem múltiplos significados e pode tender a um ato transgressivo. Mas o sentido que gosto nela é o que entendo como  mudança de rota, um movimento ou, dito de outro jeito, um modo de reconfirgurar algo que estava dado. 

Tento desatar o nó que em mim essa palavra faz quando encontro por escrito uma conferência num livro que comprei em São Paulo, à venda no saguão do teatro Paulo Autran do SESC Pinheiros no ano de 2014. Na ocasião fomos assistir ao espetáculo "The Old Woman" (A Velha) dirigido pelo americano Robert Willson e encenado pelo bailarino Mikhail Baryshnikov e pelo ator bastante conhecido Willem Dafoe. A peça é uma adaptação da obra homônima do artista e poeta russo Daniil Kharms (1905-1942) cujo enredo da obra que ainda não li, mas que vi adaptada ao teatro, versa, em suma, sobre um homem - escritor - que é atormentando por uma velha.  

A peça, algo complexa, foi um convite à construção de sentidos inesperados. A partir de imagens que vão sendo "pintadas" diante de um espectador estupefato, que pode contar com algumas legendas para se ajudar, o espetéculo se apresenta. Uma experiência sem par que me volta hoje como uma lembrança surreal em que vejo dois pitorescos personagens, corpos celestes, sentados num balanço que ancorado no nada de um lugar como deve ser o espaço sideral, em pêndulo, oscilam para frente e para trás. Conversam. Olham. Poetizam suas palavras e o olhar para o vazio, talvez o infinito. 

Mas voltando à conferência que encontro dentro de um livro e que leio como quem assiste às palavras. Trata-se do capítulo "O tempo que nos resta" de Jean-Pierre Dupuy, um ensaio filosófico. Nele Dupuy vai falar sobre trabalho, riqueza, produtividade e sua relação com o nosso tempo. Citando de entrada Ivan Illich (1926-2002), um de seus mestres, para quem no modo de produção industral está  fundamentada a lógica do desvio, Dupuy traz à tona também as ideias de Leibniz, um matemático alemão do século XIII,  que, nas suas palavras, "defendia a tese de que, a exemplo de Deus, que criou o melhor dos mundos possíveis, o ser humano se caracteriza pela sua capacidade de fazer desvios para melhor atingir seus fins". E segue dando exemplos. 

Pode até parecer, a um leitor distraído, que está tudo bem assim, na lógica do desvio como fundamento da sociedade industrial. Talvez até divertido. Mas há no texto a presença da inteligência de Ivan Illich, que ajuda a elucidar as coisas e que traz o conceito de contraprodutividade. Seguindo a leitura, através de Dupuy, vemos que Illich mostra como a inteligência humana pode ser por vezes contraprodutiva, criando para si problemas quando na busca de soluções, estúpida.  

Ler esse texto de Dupuy me faz voltar para a palavra desvios que uso para nomear meu blog e me questionar. Quero com ele mais rápido me aproximar de uma suposta solução para alguma coisa? Ambiociono com ele um melhor resultado para algum problema que eventualmente eu tenha? Ou, ainda, o que de fato estou em busca de criar quando faço um desvio para escrever aqui em meio aos afazeres cotidianos que me aboservem o tempo. Um lugar a mais para a palavra ser, penso como resposta à minha própria indagação. 

Lembro, simples, que uso o sentido de desvio aqui para me referir ao meu movimento para a palavra, sobretudo, escrita. Que escrever é sempre um risco, mas faço também um desvio do desconforto que ele evoca e sigo avançando. Só continuo. Por quanto tempo, se o tempo que me resta, não sei. Ler, assim como escrever, pode fazer a vida oxigenar e até brilhar de novo, como se tudo pudesse começar nesse ato outra vez. Tudo talvez seja muita coisa, eu sei. Mas quando uma história sim, isso já é bastante. 

À espera do espetáculo "The Old Woman", no Teatro Paulo Autran, em 2014, São Paulo.


quinta-feira, 12 de maio de 2022

Termas da Imperatriz

Decido que vou me dar uma folga dos demais afazeres e termino de ler pela manhã O médico das termas de Arthur Schnitzler, indicação que me foi dada por uma querida amiga do Rio. Depois vou caminhar um pouco sob o sol do outono, que entre todos, é meu preferido. No trajeto que faço nem percebo a emergência do hospital lotado, o ar entediado da atendente da farmácia, o incessante vai e vem do trânsito barulhento, o pedaço de carne enorme no chão da calçada comido às moscas, a apodrecer. Coisas que em outro momento, se tivesse notado, me pertubariam a alma e me agitariam a mente. Mas hoje não. Me sinto olhada pelo sol e sigo. 

Penso na leitura que, em casa, acabo de fazer. No modo como fui ocupada pelas personagens de Schnitzler até me deixar preencher por elas as horas vazias, enquanto lia, como se domada. Pelo enredo, certamente. O barato dos livros é que neles muitos eventos acontecem na vida das pessoas e nem de longe trata-se de uma vida sem emoções. Nós leitores somos arrastados por elas. Somos arrastados pelas emoções que em nós os livros despertam, também enquanto lemos. Mas essa ideia não é minha. As ideias não tem dono, alías, já dizia um filósofo que há tempo não visito.  

Mas vou deixar para fazer uma resenha do livro em outro momento, até porque já existem tantas. Fazer a minha vai me ajudar a lembrar por mais tempo do Dr. Gräsler, de Katharina, da emblemática Srta. Sabine, de Friederick e da viúva Sommer. Na própria edição que levo nas mãos há no posfácio do tradutor da obra, Marcelo Backes, uma descrição dela e de seus principais personagens que podem ajudar cada leitor a ampliar sua compreensão a respeito do romance. O livro que tenho é uma edição de 2011 da Record. 

Ademais, a leitura de O homem das termas me fez nascer um desejo: quero conhecer Santo Amaro da Imperatriz, uma cidade de Santa Catarina conhecida por suas águas termais. Acho que esse pode ser um bom passeio em família. 

No trajeto
Ainda mais um pouco. 

Enquanto fazia meu exercício matinal, me ia no pensamento, sem cessar, a música A la Folie da francesa Juliette Armanett como se se oferecesse à trilha sonora da minha caminhada; ou como se quisesse me iluminar as reflexões em torno de Schnitzler. Eu a acho linda mesmo, uma bela música. Algo nela me pega. Se o ritmo, a voz aguda, a letra, não sei. Mas achei que melhor do que ali, numa caminhada qualquer, ela fosse cair no soundtrack do filme Amores Imaginários, do canadense Xavier Dolan, que eu gostei muito também quando assisti há anos. Realmente eles têm muito a ver. Ô, memória! Gostar de casar música com filme antigo, mas quem não gosta? 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Um dia após o outro

Ontem passei quase todo o dia contendo o humor, um pouco cansada, queria sossegar. Meu filho, que está com um ano e oito meses, passou a manhã choroso (choraria o que eu não ousava chorar?), também parecia não estar em seu melhor momento. Me percebi sentimental e tratei de inventar mais paciência para lidar comigo mesma. Não sei se consegui. O Otto à tarde dormiu, mas eu não consegui descansar. Era dia das mães e apesar de meus sintomas pré-menstruais dando as caras, eu estava feliz com meus melhores presentes: meu filho e meu companheiro ao meu lado.  

Hoje acordei com vontade de desfazer a rota premeditada do dia. Caminhei por trinta minutos pelo bairro para desanuviar, relaxar a mente, sentir o ar fresco me tocando as bochechas. Deixei que me atingissem em cheio os raios solares da manhã sem proteção alguma. Ainda não eram nove horas. Depois parei para tomar um café na padaria da esquina. Penso que o tempo é meu maior luxo. Quero tanto? 

Amanhã, em partes, ainda não sei o que esperar. A vida não pára de seguir. 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Os Restos & Rastros de Livia

Meu primeiro contato com Garcia-Roza foi durante a faculdade de Psicologia na primeira década dos anos 2000. Li Luiz Alfredo, textos de psicanálise, que guardei até bem pouco tempo. Redescubro agora Livia, sua esposa, escritora e também psicanalista em Restos & Rastros, um livro que contém alguns de seus pensamentos e que foi recém lançado pela editora Geração. Sinto minha vontade de leitura provocada depois de assistir ao "Estação Sabiá" no canal TV 247 do Youtube, em que a entrevistadora Regina Zappa conversa com o escritor e jornalista José Castello e com Livia Garcia-Roza. 

Percebo, ao longo da conversa, que Restos & Rastros tem coisas importantes a me dizer (gosto de criar uma relação intimista com os livros). Quem não? E faço uma encomenda. 

Já com o livro em mãos, me detenho diante dele por um tempo deixando de lado outras coisas que também preciso fazer além de ler. "Os livros que amamos guardam um poder curativo" observo a frase depois que leio "O poeta não lembra, inventa" no capítulo "A segunda chance para viver", enquanto me sobrevem o poeta Manoel de Barros e vou adiante. 

Lendo Restos & Rastros deixo-me absorver pelas páginas e lá me demoro. Ao ler o capítulo "Nossa força de reserva" rascunho no papel palavras que nunca ousei dizer em forma de poema. Me sinto fria. Calço meias e faço um chá. Volto para o sofá onde me encolho. Ainda me resta um tempo. Continuo. 

Sigo em frente com a leitura e o capítulo seguinte me aquece o olhar. Viro as páginas como se de susto em susto e penso que vou chorar mas só acho boba minha reação. Rio. Sinto uma alegria que vem acompanhada de uma sensação que dá quando se encontra algo de bom e que se quer guardar.  Livia com seus pensamentos ilumina e nos ajuda a inventar o amanhã, quando não o hoje. Sua palavra é uma graça que recai também sobre nossas lembranças, apaziguando-as se agitadas, revigorando-as, quando mortinhas. 

Vou visitar Restos & Rastros ainda mais e mais vezes. Resgatarei o que ficou para trás. Porque algo sempre fica, como palavras não ditas. Vou juntar os restos que encontrei no livro de Livia e persistir mais inteira. Notar nos rastros que a vida vai deixando um caminho a seguir. 

sábado, 30 de abril de 2022

Um sonho e Arthur Schnitzler

Culpada, me encaminhei até a igreja mais próxima. Lá localizei sem dificuldade, por sorte, o reverendo, que estava regando umas plantinhas como se desocupado. Mas não. Ele parecia gentil. Um olhar amigável ao menos. Eles ainda existem, disse para mim mesma. Padre, confesso que pequei. Falei sem demora. Diga minha filha. Devorei biscoitos tortinhas de chocolate acompanhadas de chá matte leão sabor morango enquanto tentava ler Arthur Schnitzler numa hora vaga do dia e achei tudo muito gostoso. 

Acordei desse sonho, que acima descrevo, em estado contemplativo no meio da noite mirando o escuro. Refazendo-o mentalmente com esperança de não perdê-lo ao romper da manhã, adormeci novamente. Entretanto, acabei por esquecê-lo temporariamente e dias se passaram até que, enquanto eu brincava com o filhote num parque da cidade, a lembrança onírica me invadiu a mente de novo - ela enfim havia voltado.

Me deixei ficar só na companhia dos dois: do meu filho e do meu sonho no meio do parque. 

Ele, meu filho, brincava no escorregador. Antes de soltar as mãos e se deixar levar pela força da gravidade, olhava para mim e sorria com os olhos triunfantes. 

Mas que sonho bobo, pensei e me repreendi. Algo desrespeitoso até. Mas não desonesto. Pelo menos isso. Sem entrar naquele momento num labirinto de análises ri um riso curto e rápido que saiu mais parecendo uma expiração. Sorri de volta para o Otto. Sonhos nunca são bobos, me corrigi, claro, enfim, eu sei.  

De onde estou vejo o Otto subindo com habilidade as escadas do escorrega, entre os outros, seu brinquedo favorito. Lembrança que me vem como se fosse presente e não passado. Revivo-a agora com intesidade e expresso-a usando o tempo verbal adequado.      

O sol já ia se pondo, mudando de cor, estava ficando laranja. O entardecer combina mesmo com parque. Há o burbirinho das crianças que levado pelo vento, espalha os seus sons pelo ar e parece encantar tudo. Há adultos tentando relaxar fazendo atividades físicas ou não e os animais domésticos que passeiam com seus cuidadores conferem ao momento um alento incomum. Das árvores passarinhos observam os passantes e no lago do parque, nas beiradas, tartarugas, peixes e patos recebem os visitantes curiosos como se fossem anfitriões. 

"Já está tarde", eu disse quando olhei no relógio do celular. Envolvida pelo cenário bonito que se dispunha ao meu olhar, peguei meu filho no colo e caminhei até a saída do parque. O sonho que julguei divertido a nos acompanhar em pensamento. Em silêncio, eu ainda ria daquela graça só minha. 

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Isla Negra

Chegamos em Isla Legra embaixo de chuva e rajadas de vento forte. Em plena tempestade foi que descemos do ônibus que nos trouxe de Santiago. No local as placas com avisos e setas que indicavam "em caso de tsunami por aqui" me assustaram. Decidi ignorá-las e reconheci ao mesmo tempo uma certa excitação diante delas. Loucura. 

Com a ventania meu guarda-chuva preto virou ao contrário. Segui com passos apressados tentando me desvenciliar do vento que parecia estar em luta comigo como pude. Meu sobretudo também preto foi o que me protejeu um pouco do frio e do aguaceiro que descia com vontade dos céus sobre nossas cabeças. O clima estava sombrio quando chegamos em frente à casa de Pablo Neruda (hoje museu). Meio escuro às três da tarde. Dei graças a deus, me senti abrigada. Pensei que dia para visitar este lugar. 

Ao entrarmos percebemos que a tormenta fizera suspender a energia elétrica. A casa de Neruda, hoje museu, estava mergulhada em escuridão, iluminada apenas por uma e outra luz de emergência. Aos poucos algumas velas foram acesas. "Acabou de acontecer". Deduzimos. E torcendo para que nossa visita não fosse suspensa por causa da falta de energia, fomos até a bilheteria. 

Bilhetes comprados, tudo ok. Adiante com o tour. 

Comecei a achar que aqueles contratempos estavam cooperando para dar mais graça à visita e a fazer com que ficasse mais interessante, afinal, espantando meu mau humor. Sentia as barras das calças ainda úmidas da água da chuva gelando minhas canelas; Meu cabelo arrepiado pelo vento e meu rosto empalidecido deram-me um ar curioso - observei no reflexo do vidro de uma janelinha da casa do poeta. Lá fora o mar que estava agitado me distraiu. Ondas dançantes faziam seu espetáculo pelos ares impulsionadas pelo vento para depois sob a espuma branca escorerrem mansas até a areia fina da praia. As águas do mar se misturavam no ar em gotas com as águas da chuva. 

Dentro do museu em trevas segui bisbilhotando com os olhos os pertecences do poeta que, como tantos, também foi diplomata. Um homem bem relacionado e de maneiras extravagantes, sabia traduzir em palavras suas questões e assim ilumina algumas nossas. Não era em definitivo um simples mortal. Eu o vi como um homem muito forte. Característica que contrasta com uma certa fragilidade que às vezes é atribuída aos escritores e também poetas porque usando sua sensibilidade falam eles muito do que é frágil em nós quase que em um arroubo.  

Depois de ter sido capturada por um par de quadros pendurados numa sala de jantar onde me estendi por um longo tempo, absorta, terminei a visita do lado de fora da casa. Lá havia um pequeno jardim junto à praia onde uma âncora estava meio que enterrada. O vento seguia firme àquela altura queimando minhas bochechas à toda e fazendo meu cabelo voar sem disciplina alguma. Pablo Neruda não gostava de navegar. Talvez a âncora ali representasse seu apreço pela terra firme a despeito da paixão que sentia pelo mar, pode ser que alguém tenha dito. Era o seu jeito de fazer fincar o desejo (no sentido psicanalítico do termo). E esse era um jeito meu jeito de pensar. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

A companhia de Isabel Allende

Gosto de pensar que os livros com seus personagens, cenários, contextos e escritores nos fazem companhia. E, de longe, essa não é uma ideia minha. Basta ler "Para que serve a leitura?" capítulo da obra "Ler o mundo" da antropóloga francesa Michèle Petit para ampliar esse modo de ver e perceber o quanto esta é uma ideia amplamente compartilhada por leitores. Entre outras coisas, diz Petit também que "ler serve ainda para encontrar uma força e uma intensidade que acalmam, um inesperado que faz reviver a atividade psíquica, o pensamento, a narração interior". 

Foi assim, sentindo necessidade dessa companhia peculiar que encontramos quando abrimos um livro e nos envolvemos com as palavras que eles contém, que me aproximei de "A casa dos espíritos" da escritora Isabel Allende que já ocupava um lugar em minha estante há cerca de um ano. 

Se fizermos uma busca rápida veremos que o ano da primeira publicação desta obra foi em 1982 e que também consta como livro amplamente reconhecido pelo público e pela crítica. Isabel Allende, escritora premiada, com obras traduzidas para diversos idiomas, de nacionalidade chilena embora tenha nascido em Lima no Peru, vive atualmente nos Estados Unidos (gosto sempre de me pôr a par desses detalhes também). 

"A casa dos espíritos", livro que em 1993 virou filme nas mãos do diretor de cinema dinamarquês Bille August e que conta com atores com Meryl Streep, Antonio Banderas e Winona Ryder, nasceu durante o período de ditadura chilena (1973 - 1990), período histórico em que Salvador Allende, o então presidente do Chile, foi deposto de seu cargo por um golpe de Estado. Salvador Allende era primo-irmão do pai de Isabel, o diplomata Tomás Allende. "A casa dos espíritos" é um livro marcado, portanto, por esse período da história do Chile. 

A obra que se estende ao longo de 464 páginas (tenho em mãos uma edição da "Coleção Folha - Grandes nomes da Literatura"), narra uma história que atravessa um século inteiro. O país que dá aos complexos personagens margens e um contexto geográfico tem sua identidade não revelada. O leitor sabe, no entanto, que a sucessão de acontecimentos se dá na América Latina, em algum lugar muito distante da Europa, onde está acontecendo uma guerra e da qual pouco se tem notícias. 

Inicialmente tive alguma resistência para me entregar à leitura. Estava alhures, minha capacidade de concentração focada em outro lugar. Precisava relaxá-la um pouco de modo que fosse possível desviá-la para onde, naquele momento, eu a queria. Assim, insistente, agarrando-me em cada palavra, segui o ritmo das frases, atravessando parágrafos imergi páginas adentro e logo passei  a integrar-me à obra que eu tinha nas mãos como que em processo de infusão e a li num fôlego compassado - quase sem parar.

Por um instante o clima inaugural deste livro transportou-me e trouxe à memória lembranças de Macondo, cidade fictícia de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez). Um insight passageiro que me pôs em contato com o gênero do romance de Isabel Allende, o realismo mágico. Essas pontes sempre são interessantes para quem lê, mas é coisa quase inútil dizer. 

A leitura vale muito! 

Vou deixar aqui um link com uma resenha muito boa e completa de "A casa dos espíritos": 

https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/casa-dos-espiritos/5305