terça-feira, 7 de dezembro de 2021

7 de dezembro


antes do dia começar oficialmente, quero parar num café perto de casa ao voltar da escolinha do meu filho. são 7:30 da manhã e acabo de deixá-lo lá. na escolinha, do portão, ao avistar a profe ele sorri modestamente e, entregando-se ao colinho temporário, deixa-me ir também.

no caminho de volta o café que, enfim, não me permito. é muito cedo para dar voz ao desejo. preciso voltar para casa e dar sequência aos afazeres do dia. pelo café, passo reto.

volto para casa sentindo-me cansada. o dia mal começou. em casa o silêncio evidencia a falta de gente ali. do sofá os olhos indiferentes do meu cachorro olham o vazio.  penso no burburinho do café, sua luz quente e naquela de mim que queria ter ficado lá, por 20 minutos. que fosse. ligo a máquina de lavar roupas e o barulho rasga minha divagação pelo meio. Ao menos é ela que segue pela metade, não eu. 


sábado, 3 de abril de 2021

Anne with an E, café passado

Recém saído da noite o dia está fresquinho e tenho nas mãos uma travessa refratária de porcelana antiga. Lavando a louça do café da manhã, sinto os cheiros do jejum desfeito ainda espalhados no ar: panqueca de banana com canela, que fiz com farinha de aveia e café filtrado para acompanhar. Adoro. Pela janela da cozinha vejo a luz do dia entrar em raios iluminados fazendo a água que sai da torneira brilhar e gotículas respigam como se fossem pequenos diamantes. Ainda é cedo e a cortina de renda branca parece emoldurar o ventinho que sopra uma temperatura quase fria no meu rosto. Já é outono de novo, gosto de lembrar. Minha estação predileta.  

Do nada, porque penso agora intensamente nele, me sinto dentro de "Anne with an E", o seriado canadense baseado no livro de Lucy Moud Montgomery, escrito em 1908 e pelo qual me apaixonei quando assisti - no outono passado. Imersa nesse instante quero estendê-lo e minha imaginação está repleta. Os cenários e as cenas me invadem. Penso em minhas personagens favoritas. Estou, por um momento, nos diálogos que as fazem ser quem são. Sou eu mesma as palavras que proferem, brinco e me fantasio provisoriamente com letras. Sou um A! Deixo que o ar bucólico e dourado de Green Gables se desenhe bem devagar em mim e encho meus olhos com uma visão estupenda. Desfruto desse horizonte bem de dentro da minha cozinha. 

Anne (Amybeth McNulty) é uma menina órfã que encontra para si um lar e a despeito do seu passado caótico, nunca deixa de esperar um futuro melhor. Espera no sentido de esperançar, verbo em ação. Fã de Jane Ayre, obra famosa da escritora inglesa Charlotte Brontë (1816-1855), Anne é geniosa, com trejeitos teatrais, uma menina bastante excêntrica. Quanto à história em si, que contém questões importantes da pauta feminista, como a condição da mulher e os lugares ocupados por elas na sociedade desde muito tempo, é, em suma, um enredo teen: tem como protagonista uma adolescente em plena transição, com amigos idem, conflitos típicos, mas que aos trinta e poucos anos, me encanta tanto. 

Acho que não sou a única e acredito que o enredo de "Anne with an E" com todos os seus detalhes encanta a muitas outras mulheres como eu que devem se identificar de algum modo com as travessuras, desejos e sonhos de Anne adolescente. "Sua determinação dita seu destino" é o título do primeiro episódio da primeira temporada e fisga nossa atenção com uma beleza ímpar já nos primeiros instantes, onde há um homem com ares heroicos cavalgando, atravessando uma paisagem bucólica com pressa de chegar em algum lugar. O homem, logo descobrimos, de modos simples, poucas palavras e boa índole, trabalhador mas com espírito delicado, viria a se tornar o pai adotivo de Anne. Matthew Cuthbert (R.H.Thomson) não surge para exatamente salvá-la, mas como pai, cumpre seu papel ao acompanhar a mocinha em sua jornada. 

Depois de revisitar Green Gables e alguns de seus personagens, sobretudo revisitar meu encantamento por esse lugar que vive na minha imaginação, volto para minha cozinha onde termino de organizar os restos do café da manhã e me preparo para o dia que está começando. Estamos atravessando o pior momento da pandemia e lembro, mais uma vez, que já é outono de novo. Essa lembrança de algum modo me salva. 



domingo, 21 de março de 2021

Enjoy the Silence

                                          

Procuro no presente motivos para escrever. Atropelada pela rotina, tenho alguma dificuldade para me concentrar. Sem motivo, os dias se arrastam sobre mim. Me sinto assim o próprio caminho, estrada em que posso andar e de onde devo arrancar algum suspiro que me faça oxigenar a mente de novo. É desafiador encontrar inspiração nesses dias. O desafio então me serve de mote. Respiro novamente, as palavras começam a brotar e, devagar, embora eu não saiba ainda para onde exatamente serei levada, deixo-me enlevar por elas. 

Me abandono a essa sorte e gosto da aventura. Pressinto o ensejo. 

Lembro, então, do livro "Devoção" de Patti Smith, que tanto amei quando li. Nele Patti escreve sobre o próprio processo de escrita ou de criação e leva o leitor a mergulhar num conto lírico e enigmático, a história de Eugenia. Com os olhos que a autora empresta ao leitor, fica muito interessante ler e ver o que se passa linha a linha, acompanhar os meandros pelos quais percorrem os delicados detalhes da narrativa. Fruto doce, o desenrolar de um enredo construído sem demais complicações em que o cenário nos transporta para um bosque nevado com um lago todo congelado onde se pode patinar. Que delícia lembrar o deleite quieto que foi aquela leitura. 

Não acho relevante dizer, mas digo mesmo assim que sigo Patti no Instagram ainda que ela não saiba que existo. Rio disso. Acho graça da minha ausência que consigo imaginar em Patti Smith. E nem me sinto um caso à parte. Quem não se sente muito próximo de alguém que admire ou goste deveras é que deve ser esquisito. 

Rendo-me, aqui, a uma leve sensação de vazio porque no  papel ou na tela em branco do computador  posso seguir em frente mesmo com ele. Minha escrita sem destino certo, penso mais uma vez, e está bem, está certo imaginar assim também. Me faço acreditar. Nela sinto ir para fora o que não cabe mais dentro. A realidade ocupa muito espaço e tem derramado seus excessos a toda em nós. Transborda. As notícias, elas chegam por todos os lados. 

Penso em Maria Bethânia que disse numa entrevista com o Pedro Bial "precisamos todos de algum nível de delírio para sustentar o Real". Faz sentido. Cantarolei baixinho, depois, Quem me leva os meus fantasmas e deixei o ritmo da música dela tocar em mim como se fosse um plano de fundo.

Escrever no presente sobre o presente é difícil, arriscado até, compreendo. Como escrever sobre o que se passa enquanto o que se passa está passando, alguns conseguem. A psicanalista Maria Homem escreveu o livro "Lupa da Alma: quarentena-revelação" (Todavia), ela conseguiu isso de um jeito bem dela, potente, consistente, muito bem elaborado - como sempre, aliás. No livro ela falou dos efeitos possíveis da pandemia sobre a nossa subjetividade. Nessa última semana consegui ler o Lupa e já me programei mentalmente para uma releitura, gostei muito. Me dando tarefas, garanto um futuro. Nesse caso futuro bom porque ter bons autores como companhia é como estar entre bons amigos. 

Essa é uma crônica sobre a escrita em processo, nem pensei que texto fosse dar. Acho estranho escrever, eu que sempre gostei do silêncio. Mas em dias como esses ele tem se tornado insustentável. Pesa. Assim, quando não vou às palavras mesmo, recorro à música e deixo que ele grite à vontade lá enquanto ouço, sem parar, Enjoy the Silence (Depache Mode). Desse modo, dou continuidade às tarefas da rotina. Sua graça, me salva. Nela sou constantemente abraçada pelo sorriso do meu filho Otto e pelas caretinhas engraçadíssimas que ele tem feito só pra mim. 

terça-feira, 9 de março de 2021

Tulipas Azuis

Anoitece. 
Que horas são? 
Ouve-se. 

De longe vem o som da orquestra silenciosa. É o vento tocando na casa o véu da cortina, branca-transparente. 
Tempestade. 
Desassossego, isso tudo. 

No alto, o céu. 

A lua escondida entoa uma canção de ninar, enquanto ela escreve, devagarinho, frases curtas no vidro na janela embaçada com o dedo. Embaçada pelo próprio respirar. A vida. Lá fora, campo aberto de flores em botões no escuro. Nem sabia que se estendem assim, entre os desvãos dos dias, as manhãs, tardes e noites. 

Descobre. E a janela abre.  

Estava só ensaiando ser breve. Brisa que passa suave, deixando sua presença no ar. 
Era compreensível. 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Universo Amelie, nada demais

Para não partirem as memórias ao Deus-dará, começo, só por hoje, o trabalho de guardar as escolhidas dentro de uma crônica, que também tem seu prazo de validade, já sei. Esqueço por um momento, decido, a perecibilidade da vida e vou em frente. Não é bem uma questão de nostalgia, de cultivar diferentes formas de saudades do que vai ficando, das paisagens, dos caminhos, que seja. É antes de mais nada, mais uma questão de exercício, tentativa de organização dos dias que vão passando e que, se descuidarmos vão virando um amontoado de coisas na nossa mente, gavetas, armários, diários e fotografias. 

Como quem vai a algum lugar mesmo, volto a São Paulo capital. Quero resgatar lá, no meio da selva de pedras, alguma delicadeza, algo de principal para mim. Logo percebo que nem é muito difícil e começo a perscrutar os porquês. Consulto anotações, fotos, expressões que registrei em imagens e notas num caderno. O ano aqui não importa tanto porque as lembranças não respeitam mesmo a ordem cronológica das coisas, elas se embaralham. Entram pelas frestas do presente e agitam a mente feito crianças alvoroçadas querendo brincar. Flutuam sob a ordem de um tempo diverso, diferente desse tempo pautado por horas seguidinhas que serve para atravessar o dia e organizar a rotina. 

A ideia de ir veio tempestivamente e apesar de parecer, aquele não era um passeio sem destino. Visitar a exposição "Desvendando o Universo Amélie Poulain" em que quinze artistas lançaram seu olhar sobre famoso filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain" (2001), do diretor francês Jean-Pierre Jeunet, era o pretexto fundamental, para nós, uma aventura mesmo, mas longe de perigos reais. Estávamos de férias e havia ainda alguns poucos dias para gastar. As passagens estavam baratas e resolvemos comprar. Lá fomos. 

Só mesmo com uma mochila de mão embarcamos no avião, Wagner e eu. Íamos com a distração daqueles que buscam com o que preencher as horas vazias de um fim de férias. Já em São Paulo, Avenida Paulista, a exposição estava instalada em cima de uma loja cuja matriz fica na França e que hoje só existe no universo virtual. As instalações físicas viraram pó, imagino, porque nunca mais voltei lá, mas vi as notícias pela internet que a loja fechou. 

Voltando à exposição, a simplicidade dela foi o que de primeiro me impactou. Num café, as ilustrações dos quinze artistas coloriam as paredes. Não havia luzes, glamour, tampouco molduras pesadas ou cheias de rococó para sustentá-las. Coisa que acho bonito, mas que lá não havia. No lounge um barista atendia pessoas à mesa e decidimos sentar para tomar algo antes de imergir nas obras. Optei por um chá de citrus: laranja com abacaxi e canela. Não resistimos ao cardápio e depois do chá veio um waffle com doce-de-leite, que dividimos. Conversamos. Apreciamos nossa presença ali. A companhia das obras também. Fiquei pensando no filme de Jeunet enquanto falávamos trivialidades. 

Desvendando o Universo Amélie Poulain, a exposição, enfim. 





Eu estava encantada e enquanto observava as coloridas ilustrações penduradas na parede troquei algumas impressões, além de lembranças que diziam respeito à obra cinematográfica, com uma garota que estava por ali fazendo o mesmo que eu. Nos indicamos filmes. Ela me sugeriu "Eterno Amor" (2004) e eu sugeri a ela "Jonh Spivet: uma viagem extraordinária" (2014), ambos do mesmo diretor de Amélie. Quando voltei a Blumenau anotei tudo em detalhes, porque é claro que não foi só isso. E além dessa exposição teve Vila Madalena, Beco do Batman, passeio de bike no Ibirapuera, no Villa-Lobos também, MASP, pizza, livraria gigante e bem pequenininha. Mas lembrança mesmo, o registro mental, restou assim meio vaga e bonita pra mim e é assim mesmo que quero ela fique, por fim. 

Grazielle Monica G. Pansard

No link a seguir é possível conferir a curadoria e o nome dos artistas que participaram da exposição https://catracalivre.com.br/agenda/filme-de-amelie-poulain-e-tema-de-exposicao-na-fnac-da-paulista/

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Do Desejo

O anel de turquesa de Karina era a promessa de que tudo iria mudar. Desacreditou. No cais, onde estava, desembalou do papel em cor azul a maçã que nele estava envolvida. Fitou as ondas e jogou a promessa no mar. A maçã ela comeu e o papel amassado usou para escrever um bilhete importante:



Desejo a você 
uma canção de Frejat
que você saiba existir
e que tenha a quem amar
para ser correspondido. 
que haja canteiros floridos
rimas que façam sentido
alegria sem previsão para acabar. 
no domingo, 
um almoço com espumante
e frutas frescas no quintal.
sol ameno, brisa fresca. 
que a liberdade entre só
pela fresta e te faça 
suspirar, respirar
devagar
e sem pressa. 
Ate te domar inteira. 


                                                                                                             Grazielle. Verão, 2021. 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Dentro de mim ninguém entra também

Que o mundo está virado de cabeça para baixo mesmo não é novidade para ninguém. É só prestar atenção nos mais antigos termos "no meu tempo era assim" ou "no meu tempo era assado", que também não era fácil.  Para uma mãe, então, como todas as outras e que só quer o melhor para sua cria, do jeito que as coisas vão indo as preocupações só aumentam. Não há como negar. Assim, preocupada, levo meu filho para vacinar. Ele já tem cinco meses de vida e hoje, dia em que escrevo, é também dia de tomar a vacina meningocócica C. Como consta na página meu calendário de vacinas ela ajuda a proteger contra uma infecção causada pela bactéria Neisseria meningitidis e que, sendo grave, pode levar a morte. 

Mas, por que digo que fui preocupada? Porque tenho medo da distração das pessoas. Tomo então uma decisão. Decido que confio na ciência, na equipe médica também e vou. Levo meu bebê de cinco meses ao ambulatório mais próximo da minha casa para fazer o rápido procedimento e, seguros, voltamos para o lar. 

Esse acontecimento me fez lembrar de um livro cujo título "Dentro de mim ninguém entra" (José Castello e Arthur Bispo do Rosário) me ajuda a pensar que somos nós, em última instância, quem decidimos as ideias que entram e não entram na nossa cabeça. Assim, quando com os olhos li  (tem gente que ainda lê com o coração em dias como os de hoje) "dentro de mim ninguém entra. pensar nessa frase me encheu de uma liberdade esquisita", lembrei também do "jogo da amarelinha" brincadeira de criança que consiste em uma pedrinha ser lançada ao chão pela criança que está a jogar, com vistas a alcançar uma das casinhas desenhadas com giz colorido. Feito isso, ela deve pular sobre as casas vazias, num-pé-só até chegar no céu sem se desequilibrar ou pisar nas linhas. Mas essa lembrança nem faz muito sentido aqui. Foi só um devaneio gostoso de ter. 

Acervo pessoal

Na história ou estória - para quem preferir escrito assim, contada nesse livro de Castello e Bispo, tudo se passa num quarto de hospital onde há um menino supostamente doente. O menino que inicialmente não se apresenta passa a se chamar Arthur I e com esse nome parte para uma aventura imaginada, uma história que ele mesmo conta e escreve enquanto está preso naquela cama de hospital. Que alguém possa inventar e escrever histórias em condições como essas só mesmo em livros! Porque, pudera! Não é fácil estar doente. 

O livro lindamente ilustrado por um artista em sua época não reconhecido como tal, Arthur Bispo do Rosário (1911-1988), pois que viveu boa parte de sua vida como interno do manicômio Juliano Moreira em Jacarepaguá, é, do meu ponto de vista, uma obra de arte que julgo poderia se tornar, imagino, um clássico da literatura infanto-juvenil. Precisamos tanto de livros assim. Importante dizer que o livro é como um manual de sobrevivência em dias difíceis, pode ser lido tanto pelos mais jovens como por adultos. Assim como "Alice no país das maravilhas", ensina a ter coragem e, principalmente, a não fugir da própria solidão, porque entrega ao leitor palavras que podem ser companhia de verdade. 

Pensar essas coisas também me fez voltar mais uma vez à minha estante, onde reencontrei ainda o livro "Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio" da socióloga e historiadora Marta Dantas. Folheando suas páginas fui capturada, por ser tão interessante, pela Parte III deste livro, ela intitulada "A criação do mundo encantado" onde a autora discorre, segundo sua interpretação e dialogando com outros autores, sobre as obras de Bispo, pessoa cuja história-obra vale a pena ser visitada. 

Grazielle Monica G. Pansard. Fevereiro, 2021. 

Lugares visitados para escrever a crônica: 

CASTELLO, José. Dentro de mim ninguém entra / texto José Castello; obras Arthur Bispo do Rosário; Fotos Andrés Otero. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2016. 

DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. São Paulo: UNESP, 2009.

FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Dossiê Arthur Bispo do Rosário. 26 set. 2012. Disponível em < http://www.bienal.org.br/post/351> Acesso em fev. 2021. 

O Ambulatório de Saúde mais próximo da minha casa ;-)