domingo, 21 de março de 2021

Enjoy the Silence

                                          

Procuro no presente motivos para escrever. Atropelada pela rotina, tenho alguma dificuldade para me concentrar. Sem motivo, os dias se arrastam sobre mim. Me sinto assim o próprio caminho, estrada em que posso andar e de onde devo arrancar algum suspiro que me faça oxigenar a mente de novo. É desafiador encontrar inspiração nesses dias. O desafio então me serve de mote. Respiro novamente, as palavras começam a brotar e, devagar, embora eu não saiba ainda para onde exatamente serei levada, deixo-me enlevar por elas. 

Me abandono a essa sorte e gosto da aventura. Pressinto o ensejo. 

Lembro, então, do livro "Devoção" de Patti Smith, que tanto amei quando li. Nele Patti escreve sobre o próprio processo de escrita ou de criação e leva o leitor a mergulhar num conto lírico e enigmático, a história de Eugenia. Com os olhos que a autora empresta ao leitor, fica muito interessante ler e ver o que se passa linha a linha, acompanhar os meandros pelos quais percorrem os delicados detalhes da narrativa. Fruto doce, o desenrolar de um enredo construído sem demais complicações em que o cenário nos transporta para um bosque nevado com um lago todo congelado onde se pode patinar. Que delícia lembrar o deleite quieto que foi aquela leitura. 

Não acho relevante dizer, mas digo mesmo assim que sigo Patti no Instagram ainda que ela não saiba que existo. Rio disso. Acho graça da minha ausência que consigo imaginar em Patti Smith. E nem me sinto um caso à parte. Quem não se sente muito próximo de alguém que admire ou goste deveras é que deve ser esquisito. 

Rendo-me, aqui, a uma leve sensação de vazio porque no  papel ou na tela em branco do computador  posso seguir em frente mesmo com ele. Minha escrita sem destino certo, penso mais uma vez, e está bem, está certo imaginar assim também. Me faço acreditar. Nela sinto ir para fora o que não cabe mais dentro. A realidade ocupa muito espaço e tem derramado seus excessos a toda em nós. Transborda. As notícias, elas chegam por todos os lados. 

Penso em Maria Bethânia que disse numa entrevista com o Pedro Bial "precisamos todos de algum nível de delírio para sustentar o Real". Faz sentido. Cantarolei baixinho, depois, Quem me leva os meus fantasmas e deixei o ritmo da música dela tocar em mim como se fosse um plano de fundo.

Escrever no presente sobre o presente é difícil, arriscado até, compreendo. Como escrever sobre o que se passa enquanto o que se passa está passando, alguns conseguem. A psicanalista Maria Homem escreveu o livro "Lupa da Alma: quarentena-revelação" (Todavia), ela conseguiu isso de um jeito bem dela, potente, consistente, muito bem elaborado - como sempre, aliás. No livro ela falou dos efeitos possíveis da pandemia sobre a nossa subjetividade. Nessa última semana consegui ler o Lupa e já me programei mentalmente para uma releitura, gostei muito. Me dando tarefas, garanto um futuro. Nesse caso futuro bom porque ter bons autores como companhia é como estar entre bons amigos. 

Essa é uma crônica sobre a escrita em processo, nem pensei que texto fosse dar. Acho estranho escrever, eu que sempre gostei do silêncio. Mas em dias como esses ele tem se tornado insustentável. Pesa. Assim, quando não vou às palavras mesmo, recorro à música e deixo que ele grite à vontade lá enquanto ouço, sem parar, Enjoy the Silence (Depache Mode). Desse modo, dou continuidade às tarefas da rotina. Sua graça, me salva. Nela sou constantemente abraçada pelo sorriso do meu filho Otto e pelas caretinhas engraçadíssimas que ele tem feito só pra mim. 

terça-feira, 9 de março de 2021

Tulipas Azuis

Anoitece. 
Que horas são? 
Ouve-se. 

De longe vem o som da orquestra silenciosa. É o vento tocando na casa o véu da cortina, branca-transparente. 
Tempestade. 
Desassossego, isso tudo. 

No alto, o céu. 

A lua escondida entoa uma canção de ninar, enquanto ela escreve, devagarinho, frases curtas no vidro na janela embaçada com o dedo. Embaçada pelo próprio respirar. A vida. Lá fora, campo aberto de flores em botões no escuro. Nem sabia que se estendem assim, entre os desvãos dos dias, as manhãs, tardes e noites. 

Descobre. E a janela abre.  

Estava só ensaiando ser breve. Brisa que passa suave, deixando sua presença no ar. 
Era compreensível.