segunda-feira, 16 de maio de 2022

Meus desvios

Às vezes fico às voltas com os sentidos das palavras e as levo para passear entre outros contextos. Com a palavra desvios, que uso para nomear meu blog, não seria diferente. Penso no seu uso variável e acabo por achar que desvios é uma palavra lisa, escorregadia, pois tem múltiplos significados e pode tender a um ato transgressivo. Mas o sentido que gosto nela é o que entendo como  mudança de rota, um movimento ou, dito de outro jeito, um modo de reconfirgurar algo que estava dado. 

Tento desatar o nó que em mim essa palavra faz quando encontro por escrito uma conferência num livro que comprei em São Paulo, à venda no saguão do teatro Paulo Autran do SESC Pinheiros no ano de 2014. Na ocasião fomos assistir ao espetáculo "The Old Woman" (A Velha) dirigido pelo americano Robert Willson e encenado pelo bailarino Mikhail Baryshnikov e pelo ator bastante conhecido Willem Dafoe. A peça é uma adaptação da obra homônima do artista e poeta russo Daniil Kharms (1905-1942) cujo enredo da obra que ainda não li, mas que vi adaptada ao teatro, versa, em suma, sobre um homem - escritor - que é atormentando por uma velha.  

A peça, algo complexa, foi um convite à construção de sentidos inesperados. A partir de imagens que vão sendo "pintadas" diante de um espectador estupefato, que pode contar com algumas legendas para se ajudar, o espetéculo se apresenta. Uma experiência sem par que me volta hoje como uma lembrança surreal em que vejo dois pitorescos personagens, corpos celestes, sentados num balanço que ancorado no nada de um lugar como deve ser o espaço sideral, em pêndulo, oscilam para frente e para trás. Conversam. Olham. Poetizam suas palavras e o olhar para o vazio, talvez o infinito. 

Mas voltando à conferência que encontro dentro de um livro e que leio como quem assiste às palavras. Trata-se do capítulo "O tempo que nos resta" de Jean-Pierre Dupuy, um ensaio filosófico. Nele Dupuy vai falar sobre trabalho, riqueza, produtividade e sua relação com o nosso tempo. Citando de entrada Ivan Illich (1926-2002), um de seus mestres, para quem no modo de produção industral está  fundamentada a lógica do desvio, Dupuy traz à tona também as ideias de Leibniz, um matemático alemão do século XIII,  que, nas suas palavras, "defendia a tese de que, a exemplo de Deus, que criou o melhor dos mundos possíveis, o ser humano se caracteriza pela sua capacidade de fazer desvios para melhor atingir seus fins". E segue dando exemplos. 

Pode até parecer, a um leitor distraído, que está tudo bem assim, na lógica do desvio como fundamento da sociedade industrial. Talvez até divertido. Mas há no texto a presença da inteligência de Ivan Illich, que ajuda a elucidar as coisas e que traz o conceito de contraprodutividade. Seguindo a leitura, através de Dupuy, vemos que Illich mostra como a inteligência humana pode ser por vezes contraprodutiva, criando para si problemas quando na busca de soluções, estúpida.  

Ler esse texto de Dupuy me faz voltar para a palavra desvios que uso para nomear meu blog e me questionar. Quero com ele mais rápido me aproximar de uma suposta solução para alguma coisa? Ambiociono com ele um melhor resultado para algum problema que eventualmente eu tenha? Ou, ainda, o que de fato estou em busca de criar quando faço um desvio para escrever aqui em meio aos afazeres cotidianos que me aboservem o tempo. Um lugar a mais para a palavra ser, penso como resposta à minha própria indagação. 

Lembro, simples, que uso o sentido de desvio aqui para me referir ao meu movimento para a palavra, sobretudo, escrita. Que escrever é sempre um risco, mas faço também um desvio do desconforto que ele evoca e sigo avançando. Só continuo. Por quanto tempo, se o tempo que me resta, não sei. Ler, assim como escrever, pode fazer a vida oxigenar e até brilhar de novo, como se tudo pudesse começar nesse ato outra vez. Tudo talvez seja muita coisa, eu sei. Mas quando uma história sim, isso já é bastante. 

À espera do espetáculo "The Old Woman", no Teatro Paulo Autran, em 2014, São Paulo.


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